Arrancou esta sexta-feira de manhã o colóquio internacional “António Botto & Fernando Pessoa: Poéticas em Diálogo” que, até sábado, vai reunir vários especialistas na obra dos dois poetas e no modernismo português em Lisboa. Margarida Almeida Bastos, uma das organizadoras do evento evocativo dos 60 anos da morte de Botto, disse acreditar que esta “será uma oportunidade de ficar a conhecer mais sobre a obra” do artista “e as relações literárias” com Pessoa, responsável pela segunda edição de Canções.
Na abertura do evento ao início da manhã, Nuno Ribeiro, também organizador, lembrou a “relação muito fecunda” de Botto e Pessoa. “Foram escritores que dialogaram durante mais de uma década, desde os anos 20 até à morte de Pessoa [em 1935], que ainda publica textos sobre António Botto [nesse ano]. Se tivermos em consideração os textos, Botto é o campeão da atenção, na medida em que Pessoa escreve uma série de textos que, se somarmos tudo, são centenas de páginas.” Isto sem contar “com o que aparece no espólio”, guardado na Biblioteca Nacional de Portugal, onde decorre esta sexta-feira o colóquio. Isso é ainda “um campo por explorar”, alertou Nuno Ribeiro, que consultou recentemente os manuscritos bottianos.
No caso de António Botto, “a atenção não foi menor”, afirmou o investigador da Universidade Nova de Lisboa. No espólio, existem “inúmeros escritos críticos”. “É um autor que, face a Fernando Pessoa, ainda carece de maior atenção.” Por essa razão, Nuno Ribeiro também espera que o colóquio internacional contribua “para um conhecimento cada vez mais amplo sobre Fernando Pessoa e António Botto, mas sobretudo sobre Botto”, que se tem vindo a afirmar “cada vez mais enquanto um objeto de estudo”. Datam do ano passado as últimas duas edições relativas ao poeta — o estudo O Mundo Gay de António Botto, de Ana Klobucka, e Poesia, que reúne os poemas publicados em vida pelo escritor.
Fernando Cabral Martins: “A poesia de Botto tem uma qualidade diferente, é outra coisa”
Fernando Cabral Martins, o primeiro investigador a falar no colóquio, começou por lembrar que António Botto “é um daqueles casos em que não há diferença entre a personalidade do poeta e a do autor”. “Ele tem também essa dimensão de um herói da libertação em geral e da libertação modernista, de que constitui uma das principais exemplificações. Citaria também o caso de Mário de Sá-Carneiro cuja obra, na geração anterior, consiste numa operação de libertação de diferentes códigos, de diferentes limitações e que faz dessa operação de libertação o seu trabalho principal. Essa provocação dos limites torna Mário de Sá-Carneiro numa figura que é mais do que um poeta. Tal como Botto, [que também] é mais do que um poeta.”
Essa mistura “sociológica e poética” pode “conduzir a uma impossibilidade de leitura dos poemas”, que deixam de ser poemas para se transformarem na “projeção da figura titular e historicamente heróica que os precede e os satura”. “Esse facto no caso de António Botto é marcante, e é muito difícil discuti-lo poeticamente e ter uma opinião sobre ele que seja consensual”, afirmou o professor da Universidade Nova, frisando que Botto “é um dos poemas menos consensuais da poesia portuguesa”. Tanto é “considerado um dos modernistas por excelência” como “um poeta menor”, cuja fama advém de “circunstâncias não literárias”.
José Régio foi um dos primeiros a apontar António Botto como um nome importante do modernismo em Portugal. “Ao fazer a descrição inaugural do modernismo português, [Régio] considera Botto [como] a grande figura. Penso que o próprio Pessoa partilha desta ideia. O facto de ter dedicado seis textos ensaísticos e críticos, alguns deles bastante logos, a António Botto não advém simplesmente de uma pose qualquer ou de uma vontade que ele tivesse tido de valorizar aquele amigo de uma forma um pouco artificial”, afirmou o professor de literatura portuguesa. “Sabemos que Pessoa gostava do fingimento e poderia tratar-se de algum episódio desse tipo, mas penso que não. Penso que a leitura que faz e genuína, é para tomar a sério.”
Para o investigador, que procurou fazer um apanhado do que se tem escrito e dito sobre a obra bottiana, “essa importância real que Botto tem na poesia e na arte modernista colide às vezes com outras. Isso aconteceu-me a mim. Uma vez fiz uma antologia sobre poesia modernista e fui fazendo escolhas dos poetas que nos sabemos e, quando cheguei a António Botto, senti que havia alguma coisa de diferente. A poesia de Botto tem uma qualidade diferente, é outra coisa.”
Admitindo que no resumo que enviou para os responsáveis pelo colóquio descreveu a obra de António Botto como “modernismo popular”, Cabral Martins afirmou que, apesar de este não ser necessariamente o melhor termo, esta tem de facto “uma dimensão despretensiosa”. “É uma poesia que não oferece barreira à leitura, não exige nenhuma daquelas considerações esotéricas que o Pessoa às vezes exige [por exemplo], é uma leitura que se faz com grande ligeireza. É música ligeira. E nesse sentido, aquilo que Botto oferece é uma experiência de leitura que é surpreendentemente fácil. E isso é alguma coisa que desconcerta. Não estamos habituados a ler poesia modernista fácil.”
Sobre a reação de Botto com Pessoa, Cabral Martins lembrou o livro de Anna Klobucka, O Mundo Gay de António Botto, no qual a investigadora chama a atenção para uma relação que acredita ter sido recíproca e que não beneficiou apenas um dos lados. “Há uma relação que é uma relação a sério, uma relação poética que tem a dimensão que de facto parece ter. Isso implica, como de resto Anna Klobucka mostra muito bem, que haja igualmente uma relação ativa e produtiva com Pessoa.” Não se trata apenas da entrada de Botto “na esfera do Pessoa”, “no cone de luz que é Pessoa” e da sua transformação graças a isso. Essa “versão não tem em conta o facto de António Botto ter uma relação igualmente produtiva neste contexto”.
Essa relação e “a sinceridade com que Pessoa apreciava Botto pode ser exemplificada pelas semelhanças entre passagens de Ricardo Reis e António Botto ou vice-versa”. “Essa evidência revela que há de facto um diálogo produtivo entre a escrita de Pessoa — ou, se preferirem, de Ricardo Reis — e António Botto. A construção do neopaganismo é feita em torno de Reis mas também em torno de Botto”, afirmou o professor. “Nesse sentido, a obra de Botto ganha uma importância real efetiva” na obra de Fernando Pessoa.
O colóquio “António Botto & Fernando Pessoa” continua no sábado no Palácio Pimenta, no Campo Grande. A investigadora Anna Klobucka será responsável pela palestra de encerramento, intitulada “Pessoa leitor de Botto”. Durante a tarde, será apresentado na Fundação Calouste Gulbenkian, pela primeira vez em Portugal, o documentário “À Procura de António Botto”, realizado por Cristina Ferreira Gomes.
O programa completo do encontro pode ser consultado aqui.