Uma unidade oficiosa da polícia espanhola, conhecida como “polícia patriótica”, trabalhou durante vários meses e chegou a viajar para o estrangeiro para fabricar provas que servissem para implicar o Podemos com a Venezuela, com o Hezbollah ou com as FARC, da Colômbia.

De acordo com o jornal La Vanguardia, as ações em causa foram ordenadas em 2015, sob as ordens do então diretor adjunto de operações da Polícia Nacional, Eugenio Pino, homem próximo do ministro do Interior da altura, Jorge Fernández Díaz.

Essa unidade, que trabalhou a coberto de uma operação da divisão de crimes económicos e fiscais (UDEF, na sigla em castelhano), terminou no final de 2015 um relatório onde se implicava o Podemos (e a fundação CEPS, grupo de estudos políticos do qual fizeram parte vários fundadores daquele partido) num emaranhado de financiamento ilícito, tudo com centro e origem no regime chavista.

O Podemos não é um partido que tenha sido criado há uns anos. É um partido que vem crescendo há muito tempo, com uma infraestrutura muito organizada e com a ajuda de grandes técnicos bolivarianos que têm planeado tudo até ao detalhe mais pequeno. Nasceu na operação denominada Caribe”, lê-se no relatório, ao qual o La Vanguardia teve acesso.

Este relatório chegou a ser entregue e apresentado à Procuradoria-Geral, mas ali foi rapidamente desconsiderado. De acordo com aquele jornal, o Ministério Público rejeitou dar seguimento ao caso, depois de rever a documentação em causa e acreditar que esta não reunia a qualidade nem a credibilidade necessárias para o caso ser oficialmente investigado.

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Foi só depois de não ter conseguido levar essa investigação avante que, assegura o La Vanguardia, a equipa de investigação da tal “polícia patriótica” tratou de passar as suas informações à imprensa espanhola, com ênfase para os jornais OK Diario e El Confidencial, que durante muito tempo veiculou notícias sobre o suposto relacionamento do Podemos com a Venezuela de Hugo Chávez e de Nicolás Maduro.

Em causa, nas notícias publicadas em 2016, estavam dois supostos pagamentos feitos pelo governo de Hugo Chávez à fundação CEPS: um de 7 milhões de euros e outro de 272 mil dólares.

Esses pagamentos teriam sido feitos com a autorização (e assinaturas) de Hugo Chávez e de Rafael Isea, ministro das Finanças no ano de 2008, cargo que abandonou após ser eleito governador de Aragua, onde esteve entre 2008 e 2012. Em 2013, Rafael Isea saiu da Venezuela fugiu para os EUA. Desde então estará a colaborar com as autoridades norte-americanas, às quais terá denunciado os supostos laços entre a cúpula chavista e importantes redes de narcotráfico.

O ex-ministro chavista fugido ao regime que diz ter sido “utilizado” pelos investigadores espanhóis

Numa entrevista exclusiva ao canal televisivo La Sexta, publicada esta quinta-feira, o ex-ministro venezuelano reconheceu que a assinatura que aparece naqueles documentos é a sua, mas nega a autenticidade dos documentos.

“Evidentemente que a assinatura que ali está minha e a do comandante Chávez é a de Chávez, mas [o documento] é uma cópia”, disse sobre o documento dos 7 milhões de euros. E sobre o documento do suposto pagamento de quase 270 mil dólares, disse: “Quando vejo esse documento, vejo que não faz sentido (…). Que tenha sido ou não verdade não me cabe a mim determinar, mas isto pode levar a outras coisas. É que eu não estava no ministério nessa altura [do pagamento]. Se não me engano, houve um desmentido do banco.”

Rafael Isea contou ainda ao La Sexta como “em março ou abril de 2016”, a escassos meses das eleições de junho daquele ano, teve uma reunião com três investigadores da UDEF (e também implicados no esquema parapolicial da “polícia patriótica”). Referindo que um deles era José Ángel Fuentes Gago, que outro tinha o apelido Bonifacio e que o terceiro elemento era uma mulher, cujo nome não recorda, Rafael Isea contou como o primeiro lhe terá dito que tinha luz verde do governo espanhol para aquela reunião e que, em troca de informações, podia oferecer ao ex-governante venezuelano e à sua família proteção em Espanha.

“Fuentes Gago dirigiu-se a mim e disse-me: ‘Sou alto funcionário do [Ministério do] Interior e isto tem o mais alto apoio do governo espanhol, tudo isto só terá de ser supervisionado por um juiz, e podemos tratar com ele da condição de testemunha protegida. Conhecemos a sua situação de perseguição e podemos ajudá-lo com um passaporte e nacionalidade espanhóis, e a saírem do país, já que estão a ser perseguidos'”, contou Rafael Isea, recordando a alegada conversa com aquele inspetor.

À altura, Rafael Isea conta que acedeu a colaborar com as autoridades espanholas, prometendo que ia tentar perceber se havia uma rede de pagamentos ao Podemos e, no caso de esta se confirmar, como é que ela funcionava. “Tenho de falar com umas pessoas que trabalharam comigo e aos quais estou a pedir elementos para, digamos, corroborar”, disse. “Hoje, aqui, não sinto preparado para [assinar] uma declaração. Hoje”, acrescentou, pedindo mais tempo, de acordo com gravações daquela conversa, publicadas pelo site Moncloa.

No final de contas, escreve aquele jornal, Rafael Isea duvidou da autenticidade daqueles documentos mas acabou por autentificá-los, com a sua assinatura.

Três anos depois, na entrevista ao La Sexta, o ex-ministro chavista explicou que nunca viu os documentos — apenas assinou uma declaração que resumia aquilo que os documentos sugeriam. “Nunca cheguei a ver o documento original do despacho. É impossível uma pessoa lembrar-se de tudo o que assina”, explicou o ex-ministro.

“Acreditei na seriedade de Espanha”, disse ao La Sexta, acrescentando que foi “utilizado” por aqueles investigadores. “Nunca imaginei que houvesse pessoas que falassem disso sem que houvesse uma sustentação por trás. Pedi explicações mas não recebi nenhumas. Houve uma pessoa, com o apelido Rueda, que me escreveu e que me disse que estava a tentar resolver o assunto e pediu-me que lhe enviasse os nomes dos meus familiares… Mas não houve respostas.”

Fontes próximos do ex-ministro de Rajoy negam ter havido ordens para investigação

Desde que a ponta do véu deste escândalo foi levantada, tem havido poucas reações por parte do anterior governo, liderado por Mariano Rajoy. Porém, segundo avançaram fontes próximas d ex-ministro do Interior Jorge Fernández Díaz à agência EFE, o governo não estava a par daquela iniciativa e atribui-a somente ao inspetor José Ángel Fuentes Gago.

De acordo com aquelas fontes, José Ángel Fuentes Gago agiu “por sua conta e risco”. “Nenhum cargo público do governo mandatou qualquer um dos funcionários da polícia judicial em questão, nem interferiu na sua atuação, que se desenvolveu de forma íntegra pelos trâmites da polícia judiciária e com a escrupulosa sujeição às normas que regulam a mesma”, disse aquela fonte à EFE.

Ainda assim, no lado esquerdo da política espanhola tem havido exigências para que mais gente do anterior governo reagisse às acusações em questão.

“Esta gente atua por sua própria conta, não é?”, ironizou o fundador e líder do Podemos, Pablo Iglesias. “Nem o Ministério do Interior nem o Presidente do Governo sabem nada. Em Espanha, um grupo de chefes da polícia pode apanhar um avião e oferecer a um ex-ministro de um país dinheiro e uma identidade falsa por sua conta.”

A vice-Presidente de Governo, a socialista Carmen Calvo, também instou o PP a reagir. “O Partido Popular tem de vir a público e falar, para que nós não estejamos aqui a falar de coisas que lhes dizem respeito, como a razão de terem montado uma ‘polícia patriótica'”, disse.