Enviado especial a Pequim

Não há-de ser para se gabar, mas a ideia que Marcelo tinha dos Presidentes portugueses na Grande Muralha da China, era a de dias chuvosos. Com ele foi diferente, está céu azul e brilha um sol primaveril. “Beautiful”, diz, assim que posa para a primeira fotografia. Mais à frente, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, aproveitaria a deixa para várias provocações sobre subidas e descidas, chuva, escorregadelas e quedas do governo, mas estamos na China onde a paciência é uma virtude e, portanto, já lá chegaremos.

Para já, o início: o Presidente da República tinha acabado de aterrar em Pequim para uma visita de seis dias à China que começou esta sexta-feira e a caravana presidencial seguiu 70 quilómetros para lá do centro da cidade, em direção a um dos monumentos mais reconhecidos no mundo e testemunha de séculos de uma história onde Portugal também entrou. Embora nunca tenha sido muito eficaz na defesa das fronteiras chinesas, a Muralha foi construída também com esse objetivo. Uma metáfora a que Marcelo recorreu para estabelecer o propósito desta viagem e para afastar fantasmas que eventualmente existam sobre a atual relação entre Portugal e a China: “É um símbolo que é o contrário do que foi o nosso relacionamento histórico”, disse o Presidente que lembrou que os dois países nunca se atacaram militarmente nem entraram em coligações militares um contra o outro.

Assim que chegou à China, a comitiva de Marcelo Rebelo de Sousa seguiu para a Grande Muralha da China, um monumento centenário que para o Presidente é o símbolo de que “não deve voltar a haver muralhas, defensivas ou ofensivas”.

Marcelo não quer mais muralhas e se Portugal nunca precisou delas na relação bilateral, o Presidente enquadra esse desejo num quadro mais vasto, num espírito de plataforma que passa pela União Europeia, África e Estados Unidos: “Durante muito tempo houve muralhas, mas o que queremos hoje é um relacionamento universal, o que inclui a China, com um espírito de abertura, de colaboração e de construção conjunta. Que a muralha sirva apenas como referência histórica.”

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Sem muralhas, com mais investimento e ao nível de França ou dos Estados Unidos

“Nunca precisámos de muralhas, nem nós nem a China, para nos relacionarmos e convivermos durante tantos séculos, em Macau”. Aquilo que parece uma declaração de simpatia diplomática com o anfitrião, é também uma resposta aqueles que criticam o nível de exposição da economia portuguesa à China e os eventuais riscos para a soberania nacional. Marcelo, reconhecendo que muitas dessas críticas vêm de países parceiros na União Europeia, como a Alemanha e a França, lembra que “em termos comerciais, temos à nossa frente muitos outros países da União Europeia que não deixam de vender o que têm a vender e comprar o que têm a comprar e estimular os investimentos também da China”.

Marcelo aterra em Pequim para uma visita “descomplexada” mas “sem ingenuidades”. Primeira paragem: a Grande Muralha da China

Ou seja, apesar das críticas, em Portugal há espaço para mais investimento chinês. Quer isto dizer que as coisas estão bem como estão? Podiam ser melhores e, sobretudo, passar a ter um perfil diferente: “Preferimos a instalação de empresas, o investimento no terreno ao investimento financeiro, à compra de empresas ou de posições das empresas”. E onde? Marcelo dá exemplos de empresas portuguesas e chinesas que se juntam para investir nos dois países, e aponta oportunidades na indústria automóvel ou de componentes, no turismo e no setor agro-alimentar.

O primeiro ponto na agenda do Presidente da República na China ficou também marcado pela troca de piadas com o Ministro dos Negócios Estrangeiros

O dia está primaveril (e isso há-de ser importante já daqui a pouco), Marcelo não acusa os efeitos do jet lag e mantém um discurso claramente otimista relativamente ao futuro relacionamento entre os dois países. Tanto que anuncia que Portugal vai passar a ter com a China “um relacionamento político ao nível de países como a França, como o Reino Unido, como os Estados Unidos da América, implicando encontros anuais entre os primeiros-ministros dos dois Estados”.

São passos de gigante que estão a ser dados depressa e que mais cedo ou mais tarde, acredita o Presidente, vão acabar com os preconceitos – ou com as muralhas: “Em todos os países há preconceitos relativamente ao que é alheio, ao que é estranho e ao que é forasteiro. Estamos a viver um tempo desses. As pessoas têm medo daquilo que vem de fora. Mas a realidade é o que é e não se regressará ao tempo das muralhas, das fronteiras-prisões, do fechamento.”

A batalha de stand-up Marcelo/Santos Silva: “Espero que o Presidente não empurre o governo”

A Grande Muralha da China prestou-se, como se percebe, a muitas metáforas. E se o Presidente da República usou e abusou, o ministro dos Negócios Estrangeiros, que acompanhava a visita, também não resistiu à tentação. Marcelo falava aos jornalistas das maravilhas inesperadas de um dia de Primavera e contava até que teve “o cuidado de trazer uns sapatos que não escorregassem com a chuva”. Augusto Santos Silva ouvia atento e quando o Presidente se questionou sobre a descida no regresso, entrou na conversa:

“Sobretudo o governo, para não cair… que isto a queda do governo dá sempre azo a interpretações…”

Claramente sem estar à espera, Marcelo apenas concorda:

“Sim, sim, sim…”

E Santos Silva volta à carga:

“Espero que o Presidente da República não o empurre… que vá à frente a proteger.”

Já refeito da surpresa, Marcelo entra finalmente no jogo:

“Na China, o Presidente da República só pensa na China”.

A resposta, a chutar para canto, parece ter agradado ao ministro:

“Um verdadeiro MNE, senhor Presidente”.

Mas Marcelo tinha uma punch line na manga:

“Quem pode empurrar o governo é povo, em ano de eleições, não é o Presidente”.

A batalha ficou por ali, sem um vencedor óbvio e isso não terá agradado ao Presidente da República que, no final da visita à Grande Muralha, precisamente quando se estava a descer, desafia o ministro para um segundo round:

“Ó senhor ministro, agora é que se pode dizer que para baixo todos os santos ajudam…”

Santos Silva, que até é católico, reage com rapidez:

“Isso não posso dizer, o Estado é laico. Se não, o senhor Vital Moreira fazia já um post”.

Reconhecendo ali o argumento adversário, Marcelo não perde a face:

“Sim, mas santos… pode ser a família Santos. Santos Silva”.

E o ministro concorda:

“Sim, neste caso pode dizer que está a ser ajudado pelo Santos”.

Marcelo suspira de alívio:

“Veja como eu já dei a volta para não haver qualquer preocupação constitucional.”

Entre os 45 minutos que durou a subida e a descida de uma pequena parte da Grande Muralha, fechada a visitantes para receber a comitiva presidencial, houve várias declarações à imprensa sobre geopolítica e economia, mas também houve mais momentos picardia política que não só faziam disparar os microfones e os gravadores dos jornalistas, como permitiam a toda a gente recuperar o fôlego de uma subida íngreme.

Num desses momentos, Marcelo contava que nunca “sonhado tão alto na vida”, referindo-se ao facto de estar a visitar Pequim e a Grande Muralha enquanto Presidente da República. E voltou a ser supreendido por Santos Silva: “E em tão boa companhia.” Quando Marcelo se preparava para reconhecer a companhia do executivo (para além do MNE, também acompanhou a visita o secretário de Estado da Internacionalização Eurico Brilhante Dias), Santos Silva esclarece: “Estava a falar dos jornalistas”. Mas o Presidente não mordeu o isco: “Depois o governo aproveita sempre para mostrar como é boa companhia”. E isso, também de acordo com o Chefe de Estado, revela muita coisa: “Inteligência, agudeza de espírito e sentido de oportunidade para falar do governo, mesmo na Muralha da China. Até aqui o Ministro dos Negócios Estrangeiros não esquece a campanha eleitoral em curso”.

A visita está prestes a terminar, o Presidente português assina o livro de honra e segue para a capital chinesa onde começará uma agenda de trabalhos que começa na participação no Fórum Rota e Faixa, para depois arrancar a visita de Estado propriamente dita. Antes de abandonar a Muralha, que serviu de inspiração a tantas metáforas neste início de tarde, mais uma fotografia oficial, desta vez com a Muralha mas também com a bandeira da China em fundo: “A bandeira também é muito simbólica, mas há uma diferença entre a simbologia da muralha e a simbologia da bandeira. Não é bem a mesma coisa”.

Foi com este cenário de fundo que Marcelo Rebelo de Sousa tirou uma última fotografia oficial. “Há uma diferença entre a simbologia da muralha e a da bandeira. Não é bem a mesma coisa”.