Levantou-se e, antes de pedir ao juiz de instrução que decidisse levar os 12 arguidos a julgamento, a procuradora descreveu como o incêndio que, em 2017, deflagrou em Pedrógão afetou o Ministério Público. Num tom de voz não muito alto, Ana Simões lembrou, esta sexta-feira no Tribunal de Leiria, que ninguém “ficou alheio” ao fogo que ceifou 66 vidas e que, por diversas vezes, os próprios investigadores “se emocionaram” — mas que era encontrar “soluções plausíveis de direito”.
Para os advogados, no entanto, a questão em cima da mesa é jurídica e tem que ser desprovida de emoções. ‘Qual o comportamento que todos os 13 arguidos deveriam ter tido para evitar os incêndios de Pedrógão, que alastraram aos concelhos vizinhos?’, perguntaram por outras palavras, durante as alegações no debate instrutório que decorreu durante toda esta sexta-feira. As defesas tentaram mostrar que o fogo teria acontecido da mesma forma e, provavelmente, com as mesmas trágicas consequências. No final, o juiz Gil Carvalho da Silva anunciou que a decisão não seria tomada no imediato. Mais: como é prática comum na comarca, irá enviá-la por correio eletrónico para os advogados e arguidos. “Prometo cumprir o prazo de dez dias, previsto na lei”, disse no final da sessão.
Esta decisão será relativa aos 13 arguidos, mas com uma particularidade em relação ao autarca que lidera a Câmara de Pedrógão, Valdemar Alves, que nem sequer foi referido nas alegações pelo Ministério Público. O presidente foi constituído arguido em fevereiro, quando arrancou a fase instrutória, a pedido do advogado Ricardo Sá Fernandes — assistente no processo em representação das famílias de algumas vítimas. A defesa do autarca acabou por recorrer desse requerimento de abertura de instrução, alegando que não podia esta vítima pedir que Valdemar Alves respondesse pelos crimes de homicídio e ofensas à integridade física de todas as vítimas dos incêndios — mas apenas por ela.
A falta de legitimidade da assistente para o fazer é também o entendimento da procuradora Ana Simões, que foi vertido numa resposta a esse recurso, que só será enviado para o Tribunal da Relação quando for proferida a decisão instrutória — que vai ditar se os arguidos vão ou não a julgamento. Assim, caso sejam pronunciados, pode o Ministério Público usar este recurso para retirar o autarca do processo, como aliás decidiu fazer sempre em toda a investigação, optando por não o constituir arguido e acusá-lo.
Ricardo Sá Fernandes, no entanto, não partilha deste ponto de vista. Nas alegações finais, feitas ainda esta manhã, o advogado disse que um assistente no processo “é assistente para todos os factos”. E foi mais longe: “A não acusação ao arguido decorre por o MP se ter deixado enganar”, lembrando que o autarca sempre foi o responsável pela Proteção Civil, participou em reuniões sobre a limpeza das matas e até há uma ata de uma reunião camarária em que ele recusa delegar competências nesta matéria.
“O presidente da Câmara de Pedrógão tem que estar juntamente com as outras pessoas a responder”, disse.
A resposta por parte da defesa de Valdemar Alves viria já à tarde, a minutos de acabar a sessão. Compreendendo a posição em que o tribunal se encontra, José Magalhães e Silva considerou não haver “argumentos jurídicos suficientes para concluir pela punição de quem quer que seja”. A haver a quem apontar o dedo, prosseguiu, seria ao Estado.
“Gostava de ter visto a acusação contra o ministro x ou y ou pelos responsáveis da legislação”, atirou.
Legislação que diz ser feita em cima de lacunas de outras leis, numa situação “verdadeiramente abnorme”. “Faz uma regulamentação para a limpeza das faixas de combustível, cola essa limpeza aos planos municipais… se não houver plano… Há uma gravíssima responsabilidade do legislador”, disse.
Já no final da sessão, aos jornalistas, Magalhães e Silva disse não ter dúvidas que o pedido de Ricardo Sá Fernandes foi uma questão mediática. “É evidente que não foi por acaso que apareceu aquele requerimento procurando constitui-lo arguido, percebendo a importância mediática que isso tinha. Aparentemente, pode ter sido uma abordagem que falhou”.
Ministério Público diz que não quis “crucificar ninguém”
Logo no início da audiência a procuradora Ana Simões, a mesma que proferiu a acusação, garantiu que, “com este processo, o MP nunca pretendeu crucificar ninguém”. Procurava assim justificar as razões de um processo que senta no banco dos arguidos autarcas, funcionários da câmara, bombeiros e técnicos vários. Ainda assim, reconheceu a magistrada de frente para todos eles, há que tirar “ilações”.
“A culpa do que aconteceu é de todos nós enquanto cidadãos com responsabilidades individuais (…) que se calhar não soubemos cumprir”, disse Ana Simões.
Questões jurídicas, remeteu para o julgamento. E não devia, segundo alguns advogados.
Um deles, que representa dois responsáveis da EDP, acusados de 63 crimes de homicídio por negligência e 44 de ofensas à integridade física por negligência, foi irascível. Rui Patrício, advogado de José Geria e Casimiro Pedro, começou por contrariar a magistrada do Ministério Público — e continuou a fazê-lo ao longo das alegações finais.
O advogado disse que também a ele, “como a todos” o processo tocou, por ser um “caso impressionante e chocante”, mas lembrou a necessidade de olhar para ele sem qualquer emoção, e sim para as questões de direito que ele suscita. “Este processo é quase uma aula de direito penal”, considerou, para depois passar quase a ser o professor.
Patrício lembrou a procuradora, olhando-a várias vezes nos olhos e recebendo de volta um sorriso tímido, que, para acusar os arguidos de homicídio, o Ministério Público ignorou o “problema da causalidade”, “esquecendo dois séculos de evolução de direito penal”.
“Como é que cada arguido individualmente pode ser acusado de um resultado morte?”, interrogou. E pediu ao juiz que “mergulhasse no processo” e considerasse, antes de decidir se devem ser julgados.
O advogado, como aliás o fez o colega Paulo Farinha Alves, que representa o ex-comandante operacional Sérgio Gomes, sublinhou também a questão “da excecionalidade do incêndio”, atestada pelos relatórios que se fizeram aos fogos e que davam conta de um fenómeno de “Downburst”, com “ventos intensos e erráticos”.
Também o advogado do primeiro comandante distrital que tomou conta das operações, Mário Cerol, levantou a mesma questão: se as condutas dos arguidos fizeram dezenas de vítimas, o que deviam ter feito para evitá-las?, questionou José Acácio Barbosa.”Um erro grosseiro da acusação”, considerou, por seu turno, Paulo Farinha Alves, por várias vezes ao longo das suas alegações.
A acrescentar à alegada falta de cuidado dos arguidos, o advogado Alfredo Castanheira Neves, que dá voz ao presidente da Câmara de Castanheira de Pêra, lembrou o relatório da comissão independente que concluiu que “as mortes ter-se-iam verificado de qualquer forma”, dando como exemplo as ocorridas dentro das viaturas. “Um exemplo que o MP olimpicamente ignorou”, disse. Depois lembrou que a própria limpeza dos terrenos está muitas vezes limitada pela “propriedade privada dos munícipes”: “Muitas delas não permitem a limpeza dos terrenos, outras estão vedadas, outras desconhece-se a quem pertencem”. “Tanto assim é que o próprio legislador vem depois clarificar os critérios aplicáveis à gestão de combustível na propriedade privada”, lembrou.
O e-mail enviado para o sítio errado, que acabou indeferido — ainda sobre Valdemar Alves
O debate instrutório, que arrancou com mais de uma hora de atraso em relação ao previsto, começou com a entrega aos advogados de uma cópia das respostas do SIRESP ao tribunal, que não adiantou mais do que o relatório conhecido em junho de 2017. Seguiu-se uma recusa do juiz ao requerimento apresentado por um outro assistente.
Relatório. SIRESP “esteve à altura” e “não houve interrupção” do serviço
Dados os argumentos da defesa de Valdemar Alves, relativamente à falta de legitimidade da outra assistente para pedir a constituição de arguido do autarca, José Carlos Fernandes, que ficou gravemente ferido no fogo, repetiu o pedido. Problema: o seu advogado enviou-o para o sítio errado e o e-mail andou perdido numa caixa eletrónica do Tribunal do Trabalho e só esta semana chegou às mãos do juiz Gil Cardoso da Silva.
O engano levou a que o juiz indeferisse, por isso, o pedido de instrução, por ser “intempestivo” e por ter chegado fora de tempo. E tudo por culpa do “sujeito processual”.
Para Magalhães e Silva, este requerimento até teria pernas para andar, porque, aos olhos da lei, esta vítima já tinha legitimidade para pedir que o presidente da Câmara de Pedrógão fosse constituído arguido por homicídio e ofensas à integridade física grave. Mas chegou tarde demais. “É da vida”, concluiu o advogado, já à saída do tribunal, enquanto Valdemar Alves o ouvia, ao lado dos jornalistas.
Falta de meios, erros do Governo e a força da natureza. As defesas dos arguidos de Pedrógão Grande