Frank Zöllner, autor do mais completo trabalho sobre Leonardo da Vinci e um dos principais especialistas na obra do artista renascentista, acredita que o súbito desaparecimento do Salvator Mundi depois de este ter sido adquirido num leilão por um príncipe saudita, foi premeditado. Na opinião do investigador alemão, faz tudo parte de “uma campanha de desinformação para tornar o quadro ainda mais interessante”.
A pintura, que se acredita ter sido executada total ou parcialmente por Da Vinci, foi vendida por um valor recorde de 400 milhões de euros em 2017. Depois de esta ter sido comprada por Bader bin Abdullah bin Mohammed bin Farhan al-Saud, parente afastado da família real da Arábia Saudita, foi anunciado que a pintura de Cristo seria a estrela do novo Louvre de Abu Dhabi, que abriu portas em novembro desse ano. Porém, o quadro nunca apareceu. Os funcionários do museu dizem desconhecer o seu paradeiro, o ministério da Cultura saudita recusa-se a fornecer informações e o Louvre de Paris, que tinha interesse em exibir o Salvator Mundi na grande exposição dos 500 anos da morte de Leonardo, em outubro, diz desconhecer o que se passou.
Para Frank Zöllner, tudo não passa de uma “manobra repugnante” para aumentar o valor e interesse da pintura, datável de depois de 1570. “O Salvator Mundi é a descoberta mais importante das últimas décadas. Isso torna-o importante, mas a sua venda corrompeu ligeiramente a nossa perspetiva do quadro. Todas as manipulações do público, o carácter dos compradores, as quantias de dinheiro envolvidas – tudo isto é irritante. Agora, desapareceu. Ou parece ter desaparecido”, declarou o especialista ao Observador.
O investigador alemão acredita que os proprietários da pintura estão à espera de a colocar na grande exposição do Louvre, com curadoria de Vincent Delieuvin e Louis Frank, para lhe dar “um bocadinho mais de autentificação”. Apesar de se acreditar que Leonardo da Vinci esteve envolvido na produção do quadro, vários especialistas continuam a questionar e a pôr em causa a sua autoria, que chegou a ser atribuída a Bernardo Luini, que fazia parte do círculo do pintor florentino. Esta teoria voltou a ser defendida muito recentemente pelo historiador de arte Matthew Landrus.
“Não a puseram na exposição de setembro de 2018 em Abu Dhabi porque fazê-la desaparecer durante um bocado e fazê-la reaparecer em Paris em outubro este vai tornar a pintura mais famosa. E é possível que o Louvre [de Paris] lhe dê um bocadinho mais de aprovação”, afirmou ainda Frank Zöllner ao Observador.
O Observador questionou o Museu do Louvre de Paris sobre o paradeiro do Salvator Mundi,mas o organismo francês remeteu esclarecimentos para o Departamento de Cultura e Turismo de Abu Dhabi. Quanto à presença da obra de arte na futura exposição dedicada a Leonardo da Vinci, a instituição esclareceu : “O Museu do Louvre pediu, por empréstimo, esta obra para a exposição sobre Leonardo Da Vinco que está a organizar, mas continua à espera de uma resposta do proprietário”.
Porque é que não há certezas de que se trata de uma obra de Leonardo da Vinci?
As incertezas relativamente à atribuição do Salvator Mundi a Leonardo da Vinci baseiam-se em três pontos principais. Primeiro, ao contrário de outras pinturas originais do artista renascentista (como a Mona Lisa, que é logo referida na primeira biografia do pintor, publicada por Giorgio Vasari 31 anos depois da morte de Leonardo), o Salvator Mundi não é referido em nenhuma das fontes antigas. Por outro lado, só é possível traçar o seu percurso com certeza a partir do século XX, quando reapareceu no mercado depois de ter sido adquirido por um colecionador britânico, Charles Robinson. Anteriormente a isso sabe-se apenas que pertenceu, em meados do século XVII, a Carlos I de Inglaterra e que foi leiloado pelo filho do duque de Buckingham em 1763.
Outro problema diz respeito ao estado de conservação do quadro. Em 2005, depois de ter sido adquirido por um consórcio de comerciantes de parte que pagou apenas cerca de 10 mil euros por ela, foi alvo de um restauro “radical” que o danificou gravemente (alguns peritos defendem que o Salvator foi tão restaurado que já nem pode ser considerado um trabalho do seu autor original). O início do restauro não está documentado na sua totalidade e a publicação de todos os documentos, anunciada várias vezes desde 2011, ainda não aconteceu. Isso faz com que seja impossível dar por encerrado o processo de autentificação e definir, de uma vez por todas, se o Salvator Mundi foi ou não executado, ainda que parcialmente, por Leonardo da Vinci.
Apesar das dúvidas que pairam no ar, Frank Zöllner acredita que a pintura foi “desenhada por Leonardo, executada pela sua oficina e possivelmente retrabalhada por si”, disse ao Observador. Na introdução à edição de 2019 do seu estudo das obras do artista florentino publicado pela Taschen, o especialista explicou que são conhecidos dois estudos autógrafos do manto de Cristo e outras versões do mesmo tema produzidas pela oficina de Leonardo da Vinci ou pelo seu círculo. Mas a autoria é muito difícil de provar: “A pintura está muito danificada e foi restaurada sem a publicação dos resultados do restauro”, afirmou.
Ainda assim, não existem dúvidas acerca do fascínio que a imagem deste Cristo esfumado — segurando um globo de cristal na mão esquerda e a fazer uma bênção com a mão direita, um tema trabalhado por outros pintores renascentistas, como Giacomo Salaì, pupilo de Leonardo — exerce. “O mistério surge com o tempo, aparece quando as pessoas adoram uma pintura e escrevem sobre ela. E o mistério também tem a ver com a técnica de sfumato de Leonardo. As suas imagens desfocadas instigam a nossa imaginação. Produzem uma aura e, consequentemente, mistério. Mas muito disso está nos olhos do espectador.”
A frase foi dita ao Observador por Frank Zöllner a propósito da Mona Lisa, mas o investigador alemão acredita que acontece o mesmo com o Salvator Mundi. “A atribuição faz-nos desde logo questionar quão importante a pintura deve ter. E o preço deixa-nos malucos. Deixamos de usar o cérebro. Mais uma vez, é o sfumato que cria a aura e a aura cria ainda mais aura.”