Este ano, a habitual passadeira vermelha tingiu-se de cor de rosa. Camp, estética com múltiplas definições, caracterizada pela extravagância e teatralidade da cor e da forma, é o dress code da 71ª edição da Met Gala. Pelo Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque, passaram dezenas de convidados, na noite de segunda-feira. O evento excedeu-se no que toca à excentricidade, o tema assim o pedia. No final, quem jogou pelo seguro é que ficou mal na fotografia.
A noite ainda mal tinha começado e Lady Gaga já protagonizava um momento histórico, juntado quatro looks num só. A cantora e atriz chegou com um vestido rosa choque, com metros de cauda, da autoria do designer norte-americano Brandon Maxwell. Despiu-o, dando lugar a um vestido preto. Debaixo desse revelou um terceiro, novamente cor-de-rosa. Enquanto desfilou na pink carpet, exibiu uns botins pretos de plataforma e uma clutch em forma de telemóvel. Por fim, despiu o terceiro vestido, ficando apenas de lingerie preta, posando nas escadas e puxando um carrinho com chapéus cor-de-rosa, o acessório que usa na capa do seu disco Joanne, de 2016.
Mas essa seria só a primeira e mais coreografada extravagância da noite. Visuais como os de Lupita Nyong’o, Katy Perry, Cara Delevingne, Janelle Monáe e Kylie e Kendall Jenner marcaram pontos. Afinal, o que é o camp senão o foleiro que se torna bom precisamente por ser foleiro? As plumas estiveram entre as grandes protagonistas da noite. Além das irmãs Jenner, também a Ciara, Gigi Hadid, Naomi Campbell e a própria Anna Wintour aderiram a um dos materiais mais exuberantes da alta-costura. Quanto à cor da noite, a fotogaleria fala por si. A escolha do rosa foi esmagadora, a fazer jus à passadeira vermelha que, este ano, se transformou numa pink carpet para condizer com a cenografia da exposição.
Aqui e ali, as convidados também homenagearam figuras maiores do espetáculo e do entretenimento. Enquanto o cabelo de Ciara gritou Diana Ross, a silhueta esguia e coberta de transparências da modelo Emily Ratajkowski, com direito a duas asas sobre as orelhas e tudo, pareceu decalcada do livro de memórias de Cher, embora Jennifer Lopez também tenha partilhado a mesma referência ao escolher uma peruca de franjas. O argumentista Ryan Murphy declarou a sua homenagem ao pianista Liberace e, apesar da escolha simples, o vestido de Alicia Keys exibiu qualquer coisa de Grace Jones. A melhor parte em que nem todas as fontes de inspiração ficaram à distância. Aos 85 anos, a atriz Joan Collins deslumbrou num vestido branco de plumas Valentino. Bette Midler também esteve lá.
Mais do que pecarem por extravagância em demasia — a bem dizer, tal coisa não existe numa Met Gala, muito menos com este tema –, houve convidadas a cair no mais clássico dos erros: o de, simplesmente, ignorarem o dress code. Nisso, as manequins continuam a ser mestras. Gisele Bündchen, Hailey Rhode Bieber, Fran Summers e Karlie Kloss (a estas bem que se pode juntar a atriz Gwyneth Paltrow) podem até ser dignas de um prémio de elegância, mas deixaram os comentadores, bem como os espectadores mais atentos, a perguntar: onde é que está o camp?
Noutro campeonato, o das caudas compridas, a luta pelo pódio também esteve renhida. Lady Gaga precisou de, no mínimo, quatro assistentes para lhe comporem o vestido para as fotos. O mesmo aconteceu com Cardi B, não tanto pelo comprimento mas pelo peso, e com Nicki Minaj. Josephine Skriver, anjo da Victoria’s Secret, não ficou atrás.
Há um ano, o mesmo desfile acontecia, mas sob o tema “Heavenly Bodies: Fashion and the Catholic Imagination”, com a relação entre a moda e a iconografia católica a pairar sobre as criações usadas por dezenas de celebridades convidadas. Se bem se lembra, Rihanna foi a papisa da noite, vestida pela Maison Margiela, Katy Perry um anjo impossível de transportar numa viatura fechada, com assinatura Versace, e Sarah Jessica Parker, uma autêntica veterana da Met Gala, pisou a red carpet com um oratório no topo da cabeça, cortesia de Domenico Dolce e de Stefano Gabbana. Curiosamente, qualquer um dos visuais poderia ter voltado nesta edição sem que nenhuma das três fugisse ao tema.
A Met Gala é uma tradição com mais de 70 anos de história. Foi criado em 1948 por Eleanor Lambert com o intuito de recolher donativos para o Costume Institute. Com o passar do tempo, os membros da alta sociedade nova-iorquina deram lugar a estrelas do cinema, da moda, da música e da arte, mantendo a missão da angariação de fundos. O tema obedece sempre à exposição anual que inaugura na mesma semana. Em 1995, Anna Wintour, diretora da Vogue norte-americana, tornou-se uma das anfitriãs desta gala, marcada para a primeira segunda-feira de maio. Ano após anos, cabe a Wintour nomear uma lista de anfitriões. Na última noite, a responsabilidade coube a Lady Gaga, Serena Williams, Harry Styles e a Alessandro Michele, diretor criativo da Gucci.
Camp: quando o exagero e a fantasia desafiam o socialmente aceite
“Camp: Notes on Fashion” tem inauguração marcada para a próxima quinta-feira, contudo, a tradição cumpriu-se e a primeira segunda-feira de maio deu lugar à gala do ano, no Costume Institute do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque. A passadeira vermelha não é estendida só porque sim. Das galerias do museu para a famosa escadaria de pedra, o tema da grande exposição anual estende-se ao dress code. Depois da inspiração católica no ano passado, o camp, termo consubstanciado pela escritora e filósofa norte-americana Susan Sontag em 1964, serve de chapéu a mais uma noite de celebração da moda em todas as suas vertentes.
Embora tenda a ser definido como exagero estético e associado ao estilo drag, o camp é mais complexo do que isso. “Acho que uma das coisas que melhor define o camp são as listas [de definições] que as pessoas continuam a criar. Esse rol inacabável é, na verdade, a característica mais marcante do camp“, explicou Andrew Bolton, curador do Costume Institute, à Vogue. Mas Notes on Camp, o ensaio de Sontag, é sem dúvida o ponto de referência para definir o estilo, mas também para traçar a sua história no tempo. A autora recua até à faustosa corte de Luís XIV, na França do século XVII. Na época, o traje ganhou proporções sobre-humanas, os penteados tinham contornos espetaculares e a própria arquitetura de Versalhes foi concebida para enquadrar esta encenação de poder. Uma era que chegaria ao fim, bem como ao clímax com Maria Antonieta.
Mas o termo só surge várias décadas depois, na Inglaterra Vitoriana. Camp não denominava uma estética ou um estilo, era antes uma forma encoberta de fazer referência à homossexualidade e relacionada, em particular, com o estilo de vida de homens como Oscar Wilde. “O camp tem a ver com ultrapassar os limites do que a sociedade espera. E vemos cada vez mais pessoas a alargar esses limites, sobretudo com o género… O vestuário e a moda são uma ferramenta muito poderosa para explorar isso”, afirmou Michael Mamp, professor de moda na Central Michigan University, ao New York Post.
Em Hollywood, nos anos 30 do século passado, o especialista identifica novas imagens, bem mais próximas do que hoje consideramos ser a estética camp. Com os musicais de Busby Berkeley e os figurinos de Greta Garbo e Marlene Dietrich, o aparato e o vestuário de espetáculo trouxeram a extravagância e a fantasia como exercícios meramente estéticos. “Quando olhamos para a iconografia camp, ela tem a ver com pessoas que quiseram e que tentaram — mesmo através de maneirismos, da roupa ou da performance — sair da caixa a que as tinham limitado ou às expectativas de género”, reforçou Mamp.
No ensaio publicado em 1964, Susan Sontag definiu o termo camp em 58 pontos. “É uma forma de ver o mundo como um fenómeno estético […] não em termos de beleza, mas sim em função dos níveis de artifício, de estilização”, escreve A filósofa logo na primeira proposta de definição. Ao longo do texto, Sontag aprofunda explicações sobre o que é o camp, ao mesmo tempo que enumera objetos e situações que exemplificam a estética, dos candeeiros Tiffany e dos vestidos dos anos 20 ao Lago dos Cisnes e às óperas de Bellini. “Camp é uma mulher a andar na rua com um vestido feito de três milhões de penas”, refere o ensaio. No último ponto, a autora escreve: “[…] é bom porque é horrível […]”.
Não admira que construir a exposição que inaugura na próxima quinta-feira, em Nova Iorque, tenha sido, no mínimo, desafiante. Ou “extenuante”, como descreveu o curador. Do tratado de Sontag aos Crocs da Balenciaga, passando por peças de designers como Jeremy Scott, Vivienne Westwood, Jean Paul Gaultier e Thierry Mugler, do retrato de Luís XIV às fotografias de Robert Mappelthorpe e aos “chuveiros” desenhados por Lagerfeld para a Chloé no início dos anos 80 — a seleção de peças é uma amostra da história, mas também do que é esta estética, aparentemente, tão disseminada. “Os acessórios são, só por si, camp. São extensões mas também versões destiladas dos próprios coordenados. Foi muito importante mostrá-los porque são um veículo de novidade e de extravagância […]”, afirmou Andrew Bolton, curador da exposição, também à revista Vogue.
Não admira que construir a exposição que inaugura na próxima quinta-feira, em Nova Iorque, tenha sido, no mínimo, desafiante. Ou “extenuante”, como descreveu o curador. Do tratado de Sontag aos Crocs da Balenciaga, passando por peças de designers como Jeremy Scott, Vivienne Westwood, Jean Paul Gaultier e Thierry Mugler, do retrato de Luís XIV às fotografias de Robert Mappelthorpe e aos “chuveiros” desenhados por Lagerfeld para a Chloé no início dos anos 80 — a seleção de peças é uma amostra da história, mas também do que é esta estética, aparentemente, tão disseminada. “Os acessórios são, só por si, camp. São extensões mas também versões destiladas dos próprios coordenados. Foi muito importante mostrá-los porque são um veículo de novidade e de extravagância […]”, afirmou Andrew Bolton, curador da exposição, também à revista Vogue.
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[Lady Gaga com um vestido Marc Jacobs, a caminho do jantar pre-Met Gala, no último domingo]
O camp está em todo o lado e muitos dirão (e com razão) que nenhum dos convidados da Met Gala precisa deste tema para usar o tal “vestido feito de três milhões de penas”. Sim, de certa forma, camp tem sido o nome do meio da Met Gala, durante anos. Numa entrevista dada no início do ano, Anna Wintour mostrou reservas quanto à escolha do tema. “O único conselho que dou sempre ao Andrew [Bolton] é, seja qual for o título da exposição, certifica-te de que toda a gente o compreende imediatamente”, assinalou a diretora da Vogue norte-americana, acrescentando ainda que o tema “gerou alguma confusão”. Afinal, o que é o camp? A resposta não é linear, nem apenas uma. A partir de quinta-feira, o Metropolitan Museum of Art expõe 170 peças para tentar responder à pergunta.
Na fotogaleira, veja os looks das estrelas que passaram pela 71ª edição da Met Gala.