Mais de 200 exames nacionais foram adaptados para os alunos cegos ou com baixa visão por uma equipa do Ministério da Educação que vê nestes estudantes os “heróis” das escolas portuguesas, ao conseguirem fazer provas com 30 páginas.

Um exame nacional de um aluno cego “pode ter 30 páginas em braille”, revelou à Lusa Filomena Pereira, responsável da Direção de Serviços de Educação Especial e Apoios Socioeducativos, um organismo do Ministério da Educação que desde os anos 80 transforma manuais escolares em livros acessíveis para os estudantes cegos do ensino obrigatório.

A poucos dias de começar mais uma época de exames nacionais, que este ano serão realizados por mais de 150 mil alunos do secundário, está tudo pronto para que também os cegos possam realizar as provas.

Este ano estavam inscritos no ensino básico e secundário 65 alunos cegos. Alguns destes irão agora realizar provas nacionais.

“É muito exigente para um cego fazer um exame nacional. Enquanto o seu colega precisa de ler cinco ou seis páginas, ele precisa de ler 30. Têm de ser heróis”, defendeu Filomena Pereira.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Estes alunos têm mais meia hora para concluir as provas, mas Filomena Pereira considerou que essa é uma falsa questão, porque os testes já têm uma duração bastante longa e torna-se difícil manter a concentração durante muito mais tempo.

As escolas pediram 154 enunciados de provas em formatos adaptados para os alunos do secundário. A maior parte destina-se a estudantes com baixa visão. Apenas 19 exames nacionais serão em braille.

Os números mostram que só um aluno irá realizar a prova de Alemão enquanto outro vai mostrar os seus conhecimentos a Matemática.

A prova de Biologia e Geologia, que dá acesso ao curso de Medicina, também foi adaptada pela equipa de transcritores para poder ser feita por um estudante cego.

História, Português, Filosofia e Geografia são outras das disciplinas cujos exames foram adaptados para braille.

Todas as provas são feitas pelo Instituto de Avaliação Educativa (IAVE), que contou com a colaboração de alguns elementos da Direção de Serviços de Educação Especial e Apoios Socioeducativos.

A equipa que durante todo o ano está responsável pela adaptação dos manuais escolares pode dar sugestões de alterações dos exames, quando percebe que as perguntas não se adaptam aos alunos cegos.

“Com a nossa experiência damos algumas sugestões e ajudamos as equipas. Damos opiniões de como deveria ser adaptado o exame ou prova de aferição”, explicou Cristina Miguel, coordenadora da equipa que produz os manuais em formato adaptado.

Os exames têm de ser adaptados, mas tenta-se sempre “não modificar muito a prova original”, contou.

No entanto, exemplificou, quando é pedido ao aluno que faça um desenho não existe alternativa possível: “Esta questão não pode ser colocada” e a solução passa por arranjar uma pergunta que cumpra os mesmos objetivos, mas que esteja adaptada a um aluno cego, disse.

Além das provas adaptadas para braille, a equipa recebeu ainda 107 pedidos para fazer provas ampliadas para amblíopes. Em vez de folhas A4, estes alunos vão receber os exames do secundário em folhas A3.

Para estes alunos também foram pedidas provas para praticamente todas as disciplinas do secundário.

Estas provas ou exames podem ser realizados em salas à parte, caso seja necessário que um dos professores vigilantes auxilie o aluno no manuseamento das folhas de prova.

Existe outro grupo de alunos que irá fazer as provas em formato digital, utilizando para isso um computador. No total, foram pedidas 28 provas em formato digital.

Além do secundário, também existem alunos do ensino básico que vão fazer provas adaptadas a Matemática e Português. Foram pedidas pelas escolas 85 provas: 58 em formato ampliado e 27 em formato digital.

Filomena Pereira saudou o habitual sucesso académico que está associado a todos estes alunos, frisando que “normalmente são todos muito bons alunos”.

Em declarações à Lusa, também o presidente da ACAPO, Tomé Coelho, lembrou que “há cada vez mais alunos no ensino superior e as instituições têm vindo a criar cada vez mais condições para estes jovens tenham sucesso”.

Quase 400 manuais adaptados para braille para alunos cegos este ano

Uma pequena equipa de professores e técnicos adaptou para linguagem braille quase 400 manuais escolares destinados aos 65 alunos cegos que, este ano, frequentam as escolas do 1.º ao 12.º ano de escolaridade.

O ritual de comprar os livros antes das aulas começarem não faz parte da vida dos alunos cegos. Não há manuais em braille nas papelarias nem nos hipermercados. As editoras não os produzem.

Estas crianças e jovens dependem do trabalho de 17 funcionários da Direção-Geral de Educação (DGE), como José e Graciete. A sua missão é transcrever manuais em braille e transformar mapas, desenhos e gráficos em figuras em relevo.

Na sala de trabalho dos transcritores impera a concentração. Num processo moroso, os manuais em tinta vão ganhando forma em linhas de braille. O trabalho já se faz com a ajuda de um ‘software’, mas o ofício continua a exigir conhecimentos e criatividade.

José Tavares está às voltas com um gráfico do manual de História, enquanto Graciete Alves tenta reproduzir o mais fielmente possível um desenho do manual de Matemática do 5.º ano.

“Isto é um desafio. É como um jogo para nós”, conta à Lusa Graciete Alves, que há 25 anos trocou a agitação das salas de aula por um gabinete na Direção de Serviços de Educação Especial e Apoios Socioeducativos, a funcionar num prédio do Ministério da Educação, na Avenida 24 de Julho, em Lisboa.

Há várias décadas que dali saem milhares de volumes em braille com destino às escolas do continente e das ilhas. Um livro a tinta pode facilmente resultar em 22 volumes, como aconteceu com o manual de Português que José Tavares tem em cima da secretária. Só este ano letivo, os 12 transcritores já adaptaram 394 manuais para os 65 alunos cegos do ensino obrigatório.

Ao fim de 15 anos de trabalho, José Tavares consegue ler o braille que os cegos não veem. Com a ponta dos dedos não distingue nenhuma letra do alfabeto, mas os olhos já não estranham os sinais a tinta que aparecem no ecrã do seu computador: “Com os olhos fechados não consigo ler. Nem eu nem ninguém. Só os cegos”.

“Este ano produzimos cerca de 16 mil volumes em braille. Cada volume tem cerca de 120 a 130 páginas é uma produção muito elevada. E produzimos cerca de 36 mil figuras em relevo. É o único centro de recursos em Portugal que faz este trabalho”, contou à Lusa Filomena Pereira, diretora dos serviços.

Por vezes, o trabalho de toda uma equipa tem como destinatário apenas um aluno. Basta que seja o único nesse ano letivo e que o manual escolhido pelo professor ainda não tenha sido convertido em braille.

Independentemente do número de utilizadores, o processo é sempre igual. Depois da transcrição, os manuais seguem para a sala dos revisores, onde dois professores cegos procuram erros e falhas. O antigo docente de Filosofia, António Reis, é um deles. Está ali há cinco anos e pelas suas mãos já passaram milhares de livros de todas as disciplinas e anos de escolaridade.

“Eu vejo em média, com cuidado, 30 páginas por hora, mas também depende da disciplina”, diz António Reis, enquanto tateia as páginas de um caderno de atividades de Psicologia do 12.º ano. Ao seu lado, uma transcritora vai corrigindo os erros de um manual de Espanhol que não escaparam à revisão de António.

No final, os livros seguem para a reprodução. Alguns pisos abaixo, a impressora vai esculpindo relevos nas folhas brancas. As últimas páginas de um manual de Matemática do 5.º ano saem para as mãos de Maria Fernandes que as vai reunir em mais um dos 14 volumes em braille. A maioria já seguiu para as escolas, mas ainda há capítulos a chegar às mãos dos alunos, conta a funcionária que há 31 anos materializa o trabalho feito por transcritores e revisores.

Apesar de as aulas estarem a acabar, o trabalho dos 17 funcionários não tem fim. Em breve, vão começar a receber as encomendas para o próximo ano letivo e o processo reiniciar-se-á.