O chão é o mais indispensável dos equipamentos. Que o diga Tiago Martins, o primeiro professor de Movement em Portugal, dirigido por Ido Portal, criador deste método de treino. Da aeróbica à zumba, do yoga ao crossfit — depois de anos a conseguir definir os vários fenómenos do fitness em uma frase apenas, torna-se difícil repetir o exercício com algo um pouco mais complexo. O fenómeno é, para todos os efeitos, emergente, embora países como o Brasil e a Austrália representem já comunidades assinaláveis. Mais do que um treino, há quem defenda o Movement como uma redescoberta e, em simultâneo, uma reeducação do corpo. “Trabalhas e lidas com o teu corpo de forma totalmente ampla e não apenas direcionada para um objetivo como a força, a coordenação ou os fatores estéticos”, afirma Tiago. Usa a expressão “pequena gaveta” ao referir-se a cada um dos objetivos que podem motivar um treino, limitações claras ao que entende ser a possibilidade de desenvolver o próprio corpo até aos mais ínfimos músculos e faculdades.

De volta ao chão — de onde, aliás, nunca saiu enquanto falou com o Observador –, Tiago justifica aquilo a que chama “floor work” com o retomar da relação há muito perdida entre o homem e o solo. Gatinhar, agachar e caminhar — o processo de crescimento do ser humano culmina na descoberta do mundo a partir do ponto de vista de um ser bípede, “uma explosão imensa no nosso cérebro”, como refere. “Estabelecemos essa posição como se fosse a final, mas no Movement voltamos ao chão”, continua. Numa demonstração do professor, o Movement traduz-se numa sequência mista, uma sucessão de movimentos semelhantes aos da dança contemporânea, com passos de capoeira, exercícios de ginástica, artes marciais, parkour, breakdance e movimentos de locomoção animal à mistura. A liberdade faz parte de movimento, da mesma forma que as repetições são evitadas em prol de uma espontaneidade quase artística. Ainda assim, o fim último desta prática será sempre capacitar o corpo e nunca o seu valor performático.

Tiago Martins © Melissa Vieira

Tiago Martins © Melissa Vieira

A complexidade do Movement é a do próprio corpo, segundo defende Tiago. Em simultâneo, as aulas que dá em Lisboa trabalham força, coordenação, equilíbrio, agilidade, noções de impacto e distância, tempos de reação, flexibilidade e elasticidade. Brincar é o verbo utilizado pelo mentor israelita. “A maioria das pessoas acha que brincar é infantil, mas é na verdade uma ferramenta de todos os animais e deve ser levada mais a sério”, referiu Ido Portal, numa entrevista à revista Atlantic, publicada em agosto do ano passado. “Desde que tenhas um corpo, és um possível mover”, prossegue o orientador português. “Não é só um treino físico altamente exigente, é um trabalho que implica uma reeducação e as pessoas não estão para isso, não têm tempo. Vivem cheias de pressa e passam à frente tudo o que não tem resultados imediatos, quando é exatamente o contrário. É quando demora que devem ficar“, conclui.

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Tiago também já passou pelo processo de descobrir o Movement, embora o histórico da relação com o próprio corpo o tenha feito partir em vantagem, no que toca a explorá-lo em todo o seu potencial. Aos quatro anos, ingressou no mundo da ginástica. A partir daí, foi uma vida como atleta de alta competição. De ginasta federado passou a estudante de Belas-Artes e, aos 26 anos, cedeu à performance de circo contemporâneo, atividade que mantém até hoje, com apresentações regulares no Casino Lisboa. “O Movement apareceu na altura ideal, quando sentia que ainda precisava de dar algumas ferramentas ao meu corpo, mas não aquela linearidade da competição”, recorda. Há cinco anos, tropeçou nos primeiros vídeos de Ido Portal. “Não fazia a mínima ideia de quem ele era. Havia pouca coisa, o método já estava em desenvolvimento há muito tempo, mas ele ainda estava em pesquisa”, continua. “Comecei a usar o meu corpo e as minhas capacidades de uma forma muito mais livre, mais aberta e espontânea”. Hoje, com uma única bola de ténis, Tiago atinge a sensação de ter corrido uma maratona.

Repensar a mobilidade humana: “Até já nos ginásios se pratica sedentarismo”

O Movement, por influência do seu mentor, é extremamente crítico quanto a outras formas de manutenção e desenvolvimento físico ou, pelo menos, às mais disseminadas. “Quanto mais caros os brinquedos, mais preguiçoso é o utilizador” — para os seguidores de Ido Portal, a máxima é levada à letra. Não existem equipamentos essenciais à prática do método e os poucos que constam da lista são os mais económicos de que há memória. Já ouvimos falar da bola de ténis — “podemos usar uma, duas ou três para perceber distâncias, treinar a coordenação, potencializar os sentidos e desenvolver um foco específico dentro do globo ocular” –, mas as argolas da ginástica e os cabos de vassouras também podem ser usados com sucesso, garante Tiago. “As pessoas perguntam-me como é que podem ganhar mobilidade nos ombros e o facto é que não há nenhuma máquina de 2.000 ou 3.000 euros que lhes vá dar isso. Digo-lhes sempre para gastarem 50 cêntimos num pau de madeira e para o explorarem ao máximo —  ombros para trás, ombros para a frente, rotações internas, rotações externas. Quanto mais simples é o material, mais soluções criamos”, conclui.

© Melissa Vieira

“Entramos num ginásio e vemos pessoas sentadas a fazer movimentos altamente lineares, dos quais o corpo simplesmente não precisa”, aponta Tiago, que trabalha também como instrutor de crossfit. “O corpo não é aquilo, o corpo é matéria orgânica e não tem uma única linha reta. O endireitar das costas, o esticar o braço — é tudo absolutamente surreal quando se está a lidar com matéria orgânica, que tem peso, que tem massa e na qual não existe qualquer tipo de estrutura linear”, defende ainda. O trabalho que realiza em paralelo é relativamente específico. Ao chamado treino funcional, Tiago alia frequentemente um conjunto de técnica gímnicas. Ainda assim, a pressa em ver resultados acaba por trair os utilizadores. “A intensidade e a questão do treino funcional são muito válidas, mas, mesmo dentro do crossfit, existem algumas falhas. É tudo muito linear, muito à base de levantar, empurrar, puxar. Não existem rotações, hiperextensões ou amplitudes assimétricas. O Movement é o oposto. São dos dois válidos, mas caminham separadamente”, assinala.

Para todos os efeitos, este é um método de treino holístico. Defende Portal e Tiago subscreve. Ao fim do dia, os movimentos próprios das sequências de treino vão também para casa. Lá, o instrutor português evita ter cadeiras e sofás que lhe limitem a flexão e extensão de joelhos, anca e pés. Pratica quatro horas por dia, com claras provas de eficácia ao nível da massa muscular e da postura (para Tiago, ficar permanentemente de cócoras é, aparentemente, uma posição extremamente confortável). Mas as melhorias estéticas não são um objetivo. “O importante é ter uma fisicalidade acima da média que me permita fazer tudo o que pretendo. O processo pelo qual vou passar para chegar aí é que vai modelar a minha estrutura e dar-me uma determinada forma”, esclarece.

© Melissa Vieira

Mais uma vez, a reeducação é a principal barreira. “São fatores culturais até. Muitas pessoas não percebem porque é que têm de trabalhar no chão. Ou porque é que vão fazer hiperextensões se lhes dói as costas. Ou porque é que vão andar em pontas. Se é possível, porque é que não hão-de andar? Muitos ficam por aí — se custa, evitam”, admite. A ausência de estímulos, a monotonia da repetição e a desadequação dos exercícios propostos só trazem mais certeza a determinação na hora de diagnosticar a atual relação entre seres humanos e ginásios. “A pessoa está sentada no trabalho, conduz sentada para o ginásio e, quando chega ao ginásio, senta-se novamente para fazer exercícios que acha que são válidos. Chegam, pegam na mica com o que alguém lhes prescreveu, ou não, e fazem aquilo. Quando chegam, sabem o que têm de fazer, não há nenhum estímulo que lhes diga que aquele leg press vai ser diferente hoje do que foi ontem. Até já nos ginásios se pratica sedentarismo”, conclui.

Ido Portal: de miúdo do kung fu a pai do Movement

Natural da cidade costeira de Haifa, em Israel, Ido Portal começou por se dedicar ao kung fu. Aos 15 anos, terá trocado a arte marcial chinesa pela capoeira. Segundo contou à Atlantic no ano passado, a modalidade de combate afrobrasileira tornou-se uma obsessão — “treinava noite e dia”, confessou. Aprendeu português e acabou por criar a própria academia na cave da casa da família. Mas Portal ter-se-á sentido limitado, uma vez dedicado a uma única modalidade. Nesse momento, já havia desenvolvido uma fixação pelo movimento num sentido mais amplo. Foi então que viajou em busca de um tutor que correspondesse a essa expectativa. “Depois de inúmeras tentativas, não consegui encontrar ninguém que realmente fosse capaz de ocupar esse lugar”, escreve no próprio site.

De aprendiz à procura de orientação, Portal tornou-se no melhor candidato ao posto. Juntou-se ao treinador de ginástica Christopher Sommer, trabalhou com Claude Victoria, especialista em equilíbrio, e passou ainda uma temporada com o artista circense Yuval Ayalon. À esta coleção de experiências, o israelita adicionou ainda um ano como performer de teatro físico em Banguecoque e em Berlim. É o período de pesquisa de que fala Tiago Martins. Do boxe ao yoga, passando pelo jiu jitsu, pelo parkour, pela dança e até pela osteopatia, peça a peça, o seu método ganhou forma e consistência e começou a chegar ao resto do mundo. Primeiro, através do blogue que atualizou até 2010, depois via Facebook e Instagram.

Em meados dos anos 2000, fundou o primeiro espaço dedicado ao que viria a ser o Movement, em Haifa. Seguiram-no os seus alunos de capoeira. Pouco tempo depois, já estava a formar futuros instrutores. Mas foi só em 2013 que o nome Ido Portal deu o grande salto de popularidade. Nesse ano, foi contratado para treinar o campeão de MMA Conor McGregor, após este ter tido uma lesão no ligamento cruzado anterior (joelho) que o afastou dos ringues durante quase um ano. “Aprendi muito sobre a importância do equilíbrio e do controlo do corpo. Desde que abri os meus olhos que estou a tentar libertar o meu corpo. Estou a tentar soltar-me e ficar mais flexível para ganhar controlo. Para mim, o Movement é medicinal”, afirmou McGregor numa entrevista à Esquire, em abril de 2015.

Trabalhar na recuperação de um atleta mundialmente conhecido foi a rampa de lançamento de Portal. Ainda assim, o seu método começou por ser desacreditado e até ridicularizado. Vídeos de exercícios com chouriços de esponja, dos que habitualmente são usados em piscinas, e baralhos de cartas atirados ao ar foram alvo de comentários jocosos nas redes sociais, até mesmo por parte de outros lutadores. O desfecho? McGregor regressou às vitórias e o mentor do Movement passou a ser requisitado por jogadores da NBA e da NFL. Em 2014, abre a atual escola do Método de Ido Portal (outra designação para Movement), em Tel Aviv, por onde já passaram mais de 700 alunos desde então. Há dois anos, lançou um documentário, “Just Move”, um autêntico guia de iniciação para quem se quer juntar a esta comunidade mundial.

Lisboa: uma paragem obrigatória para o Movement

Na próxima semana, 140 praticantes reúnem-se em Lisboa, entre eles, o próprio Ido Portal. Pelo segundo ano consecutivo, a capital portuguesa recebe o European Movement Meeting. Tiago, que estará no papel de anfitrião, fala num evento que esgotou em poucos dias e garante que o número de aficionados está a crescer na cidade. Amesterdão e Barcelona são os grandes polos do Movement na Europa, o objetivo é que seja Lisboa a completar o triângulo. “Quando introduzo o método, peço para virem sem preconceitos e ideias feitas, com uma mente aberta. As pessoas estão a começar a prestar atenção e a valorizar. Sei que não vai ser de hoje para amanhã, mas o Movement é uma prática para a vida toda”, refere Tiago Martins, que há três anos começou a ser orientado pelo próprio Ido Portal, diretamente.

© Hilário Simões

Até há bem pouco tempo, as aulas do instrutor português não tinham um poiso fixo. Recentemente, instalou o seu Movement Project Lisboa nas instalações da CrossFit Jamor, em Linda-a-Velha, com o apoio de Leonor Madeira e André Dias, dois braços direitos igualmente empenhados na expansão do método em Portugal. As aulas já contam com um grupo de aficionados que oscila entre as 20 e as 25 pessoas, acontecem às segundas, quartas e sextas-feiras e têm um preço base de 7,50 euros por hora. Em paralelo, Tiago investe em iniciativas pontuais que, tão bem ou melhor do que as aulas, permitem medir o interesse do público neste método. O último aconteceu em julho e juntou cerca de 70 pessoas.

Estima-se que já sejam mais de 5.000 os praticantes em todo o mundo. A essa escala, Ido Portal e a sua equipa organizam um evento anual na Tailândia, o Movement Camp. São oito dias de imersão total, com quase 200 vagas. A dependência da comunidade face aos ensinamentos e diretrizes do mentor é total, mas Tiago rejeita a ideia de seita. Falamos de potência física, sendo que outras dimensões, como é o caso da alimentação, continuam a ser campos paralelos. “Se ambas andarem de mão dada, é claro que a tua performance vai ser mais elevada. Mas não é uma obrigatoriedade. Agora, começas a perceber que se fizeres isto ou aquilo vais potencializar a tua prática”, esclarece Tiago. A mente não é, de todo, deixada de fora. Libertar o corpo também implica uma expansão interior. “Apesar de o Movement ser movimento, também trabalhamos o stillness, a ausência aparente de movimento. Estamos imóveis, mas o nosso cérebro, o ultimate mover, continua a mil”.