Mais de 20 anos depois de ter entrado e assumido a gestão da Brisa, o grupo José de Mello prepara-se para ceder o controlo acionista da empresa, num negócio que pode ultrapassar os três mil milhões de euros. É uma grande operação, mesmo para a escala europeia, e está a atrair o interesse de muitos potenciais investidores. Mas também pela sua dimensão, dificilmente veremos investidores nacionais na corrida.

Ainda que o grupo Mello mantenha uma participação minoritária de 20%, é quase certo que a Brisa será mais uma empresa de referência a ir para o controlo de investidores estrangeiros, como aliás já aconteceu com outras concessionárias de infraestruturas de transportes. A segunda maior concessionária de autoestradas, a Ascendi, que era detida pela Mota-Engil e pelo Novo Banco, foi alienada em 2016 a um fundo internacional baseado em França, a Ardian.

Mota-Engil vende concessionárias de autoestradas por 600 milhões a fundo internacional

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A mesma Mota-Engil vendeu a concessionária portuária, dona da Liscont e outras concessões, aos turcos da Yildirim. A própria Brisa também alienou 30% da sua principal concessão a um grupo de investidores brasileiros. Isto para não falar na concessionárias dos aeroportos, a ANA, que desde 2013 é detida pelos franceses da Vinci, que são também os maiores acionistas da Lusoponte, a empresa que explora as travessias rodoviárias do Tejo, ainda que aqui tenha ao seu lado a Mota-Engil.

Com a Brisa a ir ao mercado vai mudar de mãos o capital da empresa que explora as principais autoestradas do país, desde a A1, a A2, a A5, passando pela A8 da Autoestradas do Atlântico, pela A6 que vai para a Espanha, ou a Norte, pela A3, que liga Porto a Valença. E também pela Via Verde.

Quem são os potenciais compradores? Fundos de investimento em infraestruturas, fundos de pensões, seguradoras, investidores que têm um perfil de longo prazo e gostam de remunerações garantidas, e, eventualmente, investidores que já tem interesses em autoestradas em Portugal e Espanha, como o fundo francês dono da Ascendi, ainda que neste caso possa haver um problema de concorrência, ou a espanhola Globalvia. A geografia dos interessados estende-se desde a Europa e Estados Unidos até à Austrália, onde há fundos com grande tradição em infraestruturas. Por exemplo, a Macquarie – com origem na Austrália e que já foi acionista da Lusoponte.

Quanto vão comprar? O que está à venda são dois blocos de 40%, num total de 80% do capital do grupo Brisa. É uma posição de controlo que, por isso, terá associado um prémio a pagar pelos investidores, mas a configuração do negócio vai depender muito de quantos investidores aparecerem e se vão ou não concorrer em consórcio. O preço terá implícito um prémio de controlo e, tendo como referência apenas a performance financeira recente da Brisa e o seu balanço, poderá chegar a um valor superior a três mil milhões.

Já em 2016, quando os dois acionistas venderam 30% da Brisa Concessões a um grupo de empresários brasileiros, a operação valorizou esta empresa em mais de 2,5 mil milhões de euros. Ainda que esta seja o ativo mais valioso do grupo.

Mas o valor final vai depender também de como serão resolvidas algumas incertezas e riscos associados ao grupo. A começar pelo prazo das principais concessões e a sua eventual renegociação, a da Brisa termina em 2035 e a da Autoestradas do Atlântico em 2028. Outra fonte de incerteza passa pelo conflitos entre a Brisa e os credores das concessões Douro Litoral e Brisal, que estão em incumprimento do serviço da dívida. Nesta situação já existe um acordo para entregar a Douro Litoral aos credores e manter a Brisal no grupo Brisa. No limite, dependerá sempre do número e do apetite dos interessados.

Da venda da Lisnave e da banca ao maior grupo de infraestruturas

Depois da venda traumática da Lisnave por um dólar e da alienação do setor financeiro ao BCP no final do século XX, a reinvenção do Grupo José de Mello esteve centrada durante duas décadas na Brisa. A concessionária de autoestradas foi a jóia da coroa do grupo que gerou cash-flow para outros negócios e permitiu alavancar investimentos que fizeram da José de Mello um dos maiores grupos nacionais, depois de ter perdido muito com as nacionalizações.

A Brisa, gerida desde o início do século pelo grupo José de Mello – ainda que com uma participação minoritária, primeiro de 10% e depois de 30% – tornou-se o pivot para a internacionalização, com a compra de concessionárias no Brasil e nos Estados Unidos, mas também para a ambição do grupo no setor das infraestruturas. Com a Brisa, a José de Mello estava em todas: desde as concessões rodoviárias lançadas por José Sócrates, passando pela rede de alta velocidade e pelo novo aeroporto de Lisboa.

Por trás desta dinâmica estava o negócio seguro, e altamente rentável, da maior concessão de autoestradas do país. A Brisa, então uma das empresas mais valiosas da bolsa portuguesa, era o colateral que permitia ao grupo continuar a crescer, um crescimento muito sustentado em dívida. Mas a crise que parou as obras públicas, a recessão económica que roubou tráfego às autoestradas, e a tempestade financeira sobre a bolsa e sobre Portugal, arrastaram a cotação da Brisa em bolsa para valores nunca vistos. Com a desvalorização da sua principal garantia, os bancos começaram a bater à porta e exigir reforço de colaterais aos empréstimos concedidos que o grupo Mello não tinha como dar.

Apesar da postura de não intervenção de Passos Coelho e da crise da própria banca, em 2012 os três maiores portugueses viabilizaram uma operação que ajudou a salvar o grupo e evitou que a própria banca tivesse de gerir mais um buraco numa altura já muito difícil para o setor financeiro. A resposta foi lançar, em 2012, uma oferta pública de aquisição (OPA) por parte dos dois maiores acionistas, a José de Mello e o fundo de infraestruturas Arcus, onde está o português Daniel Amaral.

A OPA de mil milhões de euros foi financiada pela Caixa, BCP e BES, os três maiores credores da José de Mello. O objetivo era tirar a Brisa da bolsa e parar a hemorragia de valor que obrigava os seus acionistas e financiadores a reconhecer no balanço as desvalorizações sofridas no mercado de capitais. A missão foi cumprida e até ultrapassada. Com a recuperação económica e o regresso do tráfego, e sem a pressão da bolsa e da banca, a Brisa prosperou e com ela ganharam os dois acionistas.

Segundo contas feitas pelo Jornal de Negócios, desde que saiu da bolsa em 2013 e até ao ano passado, a Brisa entregou aos acionistas 2,5 mil milhões de euros em dividendos e distribuição de reservas. A maior fatia destes dividendos foi para a José de Melo, mas não ficou lá. Saiu em grande parte para reembolsar os bancos no quadro do acordo de reestruturação financeira feito no quadro da OPA.

A pressão financeira sobre o grupo José de Mello é hoje menor — a dívida financeira líquida ainda será superior a mil milhões de euros —  mas o grupo ainda está limitado no desenvolvimento de novos negócios que envolvam esforço de capital. A José de Mello manteve a aposta no setor químico, cresceu na saúde onde ainda tentou comprar a Luz Saúde que perdeu para a Fidelidade, mas ficou longe de grandes operações.

A transação agora comunicada ao mercado foi iniciada pelo grupo Arcus que em junho anunciou que queria vender a sua participação na concessionária portuguesa de quase 20%. A José de Mello tinha direito de preferência, mas não exerceu e acabou por se juntar ao negócio que com a posição de controlo de grupo português irá permitir um encaixe mais elevado. E com esse encaixe o grupo pode resolver o excesso de endividamento, entrar em novas operações e voltar a expandir. Para onde e para o quê? É isso que ainda está por saber.