Há um documentário chamado “The 24 Hour War”, de 2016, assinado por Nate Adams e Adam Carolla, que conta a história da lendária disputa desportiva dos anos 60 entre a Ford e a Ferrari pelo predomínio nas 24 Horas de Le Mans, com muitas imagens de arquivo e depoimentos de pessoas que a testemunharam a protagonizaram, como Dan Gurney, Mauro Forghieri, Mario Andretti, Piero Ferrari, John Surtees ou Carroll Shelby. Procurando um pouco, “The 24 Hour War” pode ser visto sem dificuldade na Internet. Para uma versão mais ficcionada desse combate travado há meio século nas pistas entre o gigante automóvel americano e a exclusiva marca italiana, temos agora “Le Mans ’66: O Duelo”, de James Mangold.

[Veja o “trailer” de “The 24 Hour War”:]

No início dos anos 60, e para vender carros apetecíveis a uma nova geração de americanos com poder de compra, a Ford decidiu apostar na competição e fabricar um modelo desportivo que pudesse ganhar em Le Mans e ser comercializado com a aura de vencedor da corrida mais mítica do mundo. Henry Ford II fez uma proposta de compra da Ferrari, que acabou por ser recusada por Enzo Ferrari. É que o contrato especificava que a Ferrari não teria liberdade de escolha para competir em certas provas em que a Ford estivesse mais empenhada e tivesse carros seus, como Indianápolis. A Ferrari acabou por fechar negócio com a Fiat e Henry Ford II decidiu desenvolver o seu próprio carro para bater as máquinas do Comendador em Le Mans. Uma prova que a Ferrari dominava há vários anos, sem rivais à altura.

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[Veja o “trailer” de “Le Mans ’66: O Duelo”:]

Entrou então em cena o construtor e antigo piloto Carroll Shelby (que tinha ganho Le Mans em 1959 guiando um Aston Martin). Em 1964, Shelby ficou encarregue de melhorar e aperfeiçoar o Ford GT 40 construído em Inglaterra, que nesse ano se tinha estreado nas pistas e obtido resultados confrangedores nos circuitos da Europa e dos EUA, e transformá-lo num carro vencedor que desse uma lição aos Ferraris. Shelby e a sua pequena e competentíssima equipa, de que faziam parte o genial chefe de mecânicos Phil Remington e o inglês Ken Miles, tanquista na II Guerra Mundial e sobredotado do volante,  modificaram totalmente o GT40. E em 1966 levaram-no à vitória nas 24 Horas de Daytona, nas 12 Horas de Sebring e nas 24 Horas de Le Mans, onde deram um bigode à Ferrari, arrebatando os três primeiros lugares. (A Ford ganharia também as três edições seguintes). 

[Veja uma entrevista com James Mangold:]

“Le Mans ’66: O Duelo” é um filme de guerra. Uma guerra travada entre um colosso mundial da indústria automóvel com bolsos sem fundo e virado para a produção em massa, e uma pequena e requintada marca europeia, especializada e consagrada na competição. Uma guerra onde as armas são os automóveis de corrida, os soldados são os pilotos, os quartéis são as oficinas de mecânica e os campos de batalha as pistas. Uma guerra motivada por razões comerciais, mas também por questões de orgulho. Henry Ford II queria bater a Ferrari porque ficou despeitado com a recusa de compra pela Ferrari. Enzo Ferrari queria humilhar a Ford porque se sentiu insultado com os termos da oferta de aquisição.

[Veja uma entrevista com Matt Damon e Christian Bale:]

James Mangold esmera-se na recordação de uma era de ouro do automobilismo de competição, em que os carros não eram super-computadores com rodas, a mão humana intervinha em todas as fases da construção e do aperfeiçoamento de um carro de corrida, a mecânica dependia do talento, da experiência, da inspiração e da improvisação, a segurança não era uma preocupação primordial e todos os anos morriam  pilotos  durante as provas. Daí que uma parte das duas horas e meia de “Le Mans ’66: O Duelo” seja dedicada aos esforços de Carroll Shelby (Matt Damon), Ken Miles (Christian Bale) e dos que os rodeiam para transformarem o GT40 numa máquina vencedora (“competição” e “vitória” são os motores desta história), enquanto vão aguentando as pressões dos executivos da Ford. 

[Veja uma entrevista com Catriona Balfe:]

E como a resistência e a velocidade são também fundamentais, “Le Mans ‘66” está nas suas sete quintas quando os bólides ligam os motores, Mangold mete a quinta visual e acompanha o entusiástico e perfeccionista Ken Miles a zunir pista fora ao volante do seu GT40, acrescentando um toquezinho místico com a história da “volta perfeita” que o piloto a certa altura conta ao filho. Tudo culmina numa empolgante recriação das históricas 24 Horas de Le Mans de 1966, completa com incidentes verídicos, como a porta do carro de Miles que não se fechava à partida, ou a ordem da Ford para este abrandar o andamento e permitir que os três carros chegassem juntos, por questões simbólicas e de publicidade, que redundou no famoso equívoco do vencedor trocado.

[Veja cenas da rodagem:]

Este é um filme ao jeito da “velha escola”. Estamos num meio masculino e adulto, associado a uma atividade altamente competitiva e arriscada, que testa e destaca o carácter e as qualidades dos que estão nela envolvidos, e celebra os que são superiormente dotados para a executar. E a única mulher de “Le Mans ’66: O Duelo”, Mollie (Catriona Belfe), a mulher de Ken Miles, parece saída de um filme de Howard Hawks. Veja-se a sequência em que ela começa a discutir com o marido quando vai a conduzir, mete prego a fundo e Ken, aterrorizado, implora-lhe que abrande; ou quando vai buscar uma cadeira desdobrável e se põe a ler uma revista, enquanto espera que Ken e Shelby, que se travaram de razões, se cansem de andar ao murro no outro lado da rua.

Christian Bale é muito bom num Ken Miles tão teimoso, castiço e inconformista como grande piloto de testes e de competição. Bale interpreta-o com um cerrado sotaque do norte de Inglaterra, que usa para sublinhar o feitio da personagem (o verdadeiro Miles, pelo contrário, assemelhava-se a David Niven no ar, no trato e na voz). Só é pena que o texano exuberante e desembaraçado que era Carroll Shelby seja interpretado pelo insosso e insubstancial Matt Damon. Ele é a única peça que rateia na mecânica bem afinada de “Le Mans ’66: O Duelo”.