“Sempre foi um revolucionário”, disse Marcelo Rebelo de Sousa ao manifestar o seu pesar pela morte de um dos nomes maiores da música portuguesa, que não se ficou só pelas canções de intervenção mas teve ligações ao fado. Temas como “Que inquietação”, “Vim de muito longe”, “Qual é a tua ó meu” ou “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” tornaram-se amplamente conhecidos. Morreu o cantor e músico José Mário Branco, aos 77 anos, depois de um acidente vascular cerebral súbito, na noite de 18 para 19 de novembro.

[Pode ouvir aqui a edição especial do programa Isto Não Passa na Rádio sobre as histórias das músicas de José Mário Branco. Com Tiago Pereira, Diogo Lopes, Nelson Ferreira e Rui Portulez]

José Mário Monteiro Guedes Branco, mais conhecido como José Mário Branco, nasceu no Porto a 25 de Maio de 1942 e foi um músico e compositor icónico cujo percurso artístico está indelevelmente associado às canções de intervenção no período do 25 de abril de 1974. De entre toda a sua extensa obra destaca-se o álbum “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”, de 1971, que foi um marco não só na sua carreira mas também na história recente da música portuguesa, muito por culpa do cariz reivindicativo das suas letras, sempre trabalhadas de forma exímia — Nuno Galopim contou à RTP que este elemento era um dos seus fortes, bem como a composição de coros musicais.

Filho de professores primários, cresceu entre o Porto e Leça da Palmeira. Iniciou o curso de História, primeiro na Universidade de Coimbra, depois na Universidade do Porto — acabou por deixá-lo por terminar. Expoente da música de intervenção portuguesa, foi perseguido pela PIDE pelas ligações ao Partido Comunista e exilou-se em França, em 1963.

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“José Mário Branco era uma referência do período de resistência à ditadura, da revolução e pós-revolução de Abril e de uma geração que, através da sua voz, exprimiu a vontade de mudança política económica e social na sociedade portuguesa“, disse Marcelo Rebelo de Sousa, à TSF, em reação à morte do artista. “Foi sempre um revolucionário, um insatisfeito, desejando sempre muito mais e muito melhor.”

Ainda exilado, e em plena luta contra o Estado Novo, lançou o álbum “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” (1971), com textos de autores como Natália Correia, Alexandre O’Neill, Luís de Camões e Sérgio Godinho. Dois anos depois, gravou um disco com Zeca Afonso, em Paris — “Venham mais Cinco”, um dos grandes símbolos de oposição à ditadura portuguesa. Regressou a Portugal em 1974 e fundou o Grupo de Ação Cultural – Vozes na Luta!, com o qual gravou dois álbuns.

“Há uma história gira com a Grândola, que resulta de um erro técnico meu”, contou José Mário Branco, citado pelo Diário de Notícias. “O Zeca chegou a Paris com aquela canção, tinha três quadras, era uma canção que ele dedicava a uma coletividade de Grândola… eu de miúdo conhecia o Alentejo. Era a época da Monda, eles iam para lá de manhã e quando voltavam ao fim do dia os homens e mulheres vinham abraçados cantando. O passo deles era: arrasta, pousa, arrasta, pousa.

‘Ó Zeca, vamos dar a isto a forma do cante alentejano.’ Tens de fazer a estrutura e eu queria acrescentar os passos dos gajos. O Zeca gostou da ideia. Há uma fotografia dele a aprender como são esses passos. Pedi ao técnico para estender cabos de 30/40 metros, marcámos o beat numa das pistas e gravámos três ou quatro minutos de passos como eles faziam, à volta dos quatro microfones. Foi às quatro da manhã, para não haver ruídos. Só que na mistura eu não estive atento e soa ao dobro da velocidade, parecem soldados.

Um dia perguntei ao Otelo: ‘Porque é que vocês escolheram a Grândola, pá?’ E ele: ‘É uma música tradicional que levantaria menos suspeitas da censura e porque tem aqueles passos que são mesmo de marcha militar’.”

O seu papel no fado foi ficando cada vez mais preponderante com o passar do tempo, tendo, por exemplo, produzido todos os discos do fadista Camané e não só. O próprio Camané já reagiu à notícia, através da RTP. Claramente emocionado, o fadista contou que José Mário branco tinha sido “extremamente importante” no seu percurso musical e na sua carreira. Descreveu-o ainda como um “artista fantástico de uma dimensão incrível muito para além de um artista de intervenção”. “Era extraordinário, tinha bom gosto, respeito pela estética musical e uma sensibilidade única”, rematou.

O seu primeiro disco, “Seis Cantigas de Amigo”, foi editado em 1967. Depois disso seguiu-se o single “Ronda do soldadinho”, de 69. A sua discografia inclui, entre outros trabalhos, “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades” (1971), “Margem de certa maneira” (1973), “A Cantiga é uma Arma” (1976), “Ser Solid(t)ário” (1982), “A Noite” (1985), “Correspondências” (1990), “Canções Escolhidas” (1999) e “Resistir é vencer” (2004).

Mas nem toda a obra de José Mário Branco se encerra nestes álbuns. Além de todos os trabalhos de composição e produção, o músico tinha uma série de material disperso que foi compilado, em 2018, no duplo CD “Inéditos (1967-1999)”. Um trabalho de “arqueologia musical”, como o descreve a Blitz.

Dez anos depois do último disco, em 2014, saiu o documentário “Mudar de Vida”, da autoria de Nelson Guerreiro e Pedro Fidalgo, que traça a história do músico. “Sou o Zé Mário Branco, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto, continua, desde há 40 anos a denunciar e a acreditar que é possível realizar a Mudança, aquela grande mudança que faz transformar o Mundo e a Vida numa coisa melhor.”

Em 2017, “Zé Mário”, como os mais próximos o tratavam,  surpreendeu os fãs com um disco duplo, o Inéditos 1967-1999. Na altura, o Observador escreveu o seguinte sobre essa obra:

A capa, tão simples que só tem autor e título inscritos em fundo branco, até já motivou na internet comparações curiosas com o “álbum branco” dos The Beatles (de título homónimo, mas assim nomeado devido à capa). Ouve-se o disco e logo no primeiro tema surge um dedilhado de guitarra e a voz de José Mário Branco a cantar versos nunca ouvidos: “Quantas Sabedes Amar, amigo”. É quanto basta para perceber que Inéditos 1967-1999 está recheado de pérolas. O título do disco merece discussão, porque alguns dos 26 temas do álbum de 2 CDs que José Mário Branco (J.M.B.) acaba de editar não são inéditos, foram já lançados em EPs, LPs e singles. Todos em formato físico e em grande medida há muito tempo perdidos, é certo. É o caso das Seis Cantigas de Amigo que J.M.B. gravou para os Arquivos Sonoros Portugueses, de Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça (a que acresce uma maquete que ficou de fora da seleção desse EP). É também o caso de “Ronda do Soldadinho” e “Mãos ao Ar!”, um par de temas editados em formato single. Ou ainda “Le Proscrit de 1871”, uma colaboração do músico com o grupo francês Organon.

“É uma grande perda para a música e a cultura portuguesa”, disse à Rádio Observador o músico Luís Represas, que fez questão de deixar o repto: “Seria bom que o acervo dele não se perdesse na névoa do tempo.”

Há pouco mais de um ano, o Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Universidade Nova de Lisboa apresentou o Arquivo José Mário Branco, o maior repositório online de material associado à vida e obra do músico e cantor português. Inclui mais de mil documentos entre eles imagens, vídeos, músicas e escritos.

José Mário Branco ganhou dois prémios José Afonso, que reconhece o que é feito na música em Portugal. Em 2017, no ano em que completou 50 anos de carreira, foi homenageado na Feira do Livro do Porto e foram reeditados os sete álbuns de originais e um ao vivo, de 1971 e 2004. “Não são coisas que me motivem muito, tenho respeito pelo respeito das pessoas, mas essas histórias das efemérides…”, disse o músico na altura.

Marcelo Rebelo de Sousa admite condecorar José Mário Branco — As reações à morte de um “artista inconfundível”

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, disse à TSF que tentou condecorar o músico e homenageá-lo em vida, mas que José Mário Branco recusou. “Foi sempre muito avesso a condecorações, a reconhecimentos públicos.” Agora, Marcelo admite condecorá-lo a título póstumo. “Se aqueles que lhe são próximos entenderem que não traem a sua memória aceitando esse reconhecimento público, então, obviamente, o que não foi possível fazer em vida será feito postumamente.”