A tensão na negociação do Orçamento do Estado (OE) para o próximo ano tem sido mais elevada do que nos últimos anos e, embora o Governo justifique com “o calendário mais apertado” para a apresentação da proposta, não fica apenas pela questão da forma. A correria tem dificultado as negociações interministeriais e também com os parceiros parlamentares onde o Governo avista um problema bicudo: a potencial coligação negativa no IVA de energia. Uma ameaça que pôs o Executivo socialista a estudar hipóteses para ter já na proposta inicial medidas que permitam a redução da fatura da luz, mas sem tocar na receita do IVA.
A ideia é ir por via das contribuições das empresas da energia. E se a EDP “ajudou” no ano passado, ao pagar o que estava em falta da CESE (contribuição extraordinária sobre o setor energético), desta vez pode ser a vez da Galp. O Observador sabe que há conversas com a empresa para pôr fim a um diferendo de mais de 300 milhões de euros, um processo que para já corre de forma autónoma, mas que pode vir a reforçar uma solução alternativa à baixa do IVA para 6%.
“Estamos a levar seriamente esta matéria tendo em conta as posições dos partidos e estamos a estudar todo o tipo de soluções”, adianta ao Observador fonte do Governo que admite que a antevisão de uma coligação contra os socialistas — juntando direita e esquerda — para conseguir baixar o IVA na eletricidade pôs o Governo a “estudar alternativas” que “passam pela redução do custo fixo, mas também pelo pagamento da contribuição extraordinária pelas empresas“.
Redução do IVA na eletricidade pode levar a coligação negativa
A baixa direta do IVA é uma via que o Governo está empenhado em travar – seja pela redução de centenas de milhões de euros na receita fiscal, seja porque não acredita nos efeitos positivos da medida para a economia. Por isso mesmo, vários ministérios estão a trabalhar em alternativas para pôr em cima da mesa das negociações com o Bloco e o PCP. E a receita do ano passado pode repetir-se: usar os milhões da contribuição extraordinária sobre o setor energético (a CESE) para reduzir o défice tarifário da eletricidade e por essa via conseguir baixar os preços.
O Governo está “a estudar cenários de redução com a respetiva compensação e alternativas de redução das tarifas por outras componentes da fatura”, adianta fonte do Executivo. E isto, explica a mesma fonte, porque a redução do IVA “tem um efeito orçamental significativo e beneficia todos: quem precisa, mas também quem não precisa”. O mesmo governante previne que “também não é evidente que a solução final dos partidos seja a redução do IVA para 6%”, lembrando a possibilidade de reduzir dos 23% para a taxa intermédia, 13%. Outro membro do Governo sublinha que poderiam ser menos 450 milhões de euros se fosse só para a intermédia.
Também se fazem outras contas, mais políticas, nomeadamente sobre a possibilidade de acordo entre a direita e a esquerda nas compensações de uma medida desta magnitude. Tendo em conta o valor em causa, um dos membros do Governo não esconde ao Observador que aqui (tal como no caso dos professores que marcou o final da anterior legislatura) podia haver matéria para dramatizar: “Em que posição ficaria o Governo se se visse forçado a governar com o orçamento dos outros?”, questiona. E mais, alerta o mesmo governante, poderia dar um sinal errado ao exterior: “Podíamos passar a ser vistos como o país que deixou de estar comprometido com a descida da dívida”. Mas este é um cenário que, ainda assim, o Executivo olha com desconfiança, até porque duvida que PSD e partidos à esquerda “se entendam no que tiram mas também no que põem porque têm caminhos diferentes para compensar o impacto de uma descida dessas” do IVA, explica outro governante.
No último debate quinzenal, António Costa também sinalizou o desconforto do Governo com uma mexida direta do IVA na energia, apontando antes para a prioridade dada a uma solução estrutural que permita reduzir o défice tarifário. Foi graças ao pagamento pela elétrica das contribuições em falta que foi possível obter uma descida de 3,5% da eletricidade em 2019. Este ano pode ser o acordo com a Galp a fazer a diferença.
Governo negoceia contribuição da energia com EDP para garantir cobrança em falta
Galp: um conflito de vários anos que vai já em 320 milhões
Desde 2014 que a Galp Energia tem vindo a contestar o pagamento da contribuição extraordinária e o diferendo judicial com o fisco já chega aos 320 milhões de euros. Agora, o Observador sabe que têm existido conversas entre o Governo e a empresa para encontrar uma solução para este conflito que já dura há quatro anos. A ideia é que a Galp comece a pagar a CESE ou até uma parte do valor já liquidado, mas por cobrar, e que está em contencioso.
Mais do que uma fonte no Governo confirmou ao Observador a existência de conversas com a Galp sobre a CESE, protagonizadas por responsáveis dos ministérios das Finanças e do Ambiente, que tutela a energia.
O Observador contactou a empresa e os dois ministérios. Fonte oficial da Galp diz que a empresa não “comenta processos em curso”, uma resposta que deu também à pergunta sobre o ponto de situação dos processos de contestação em tribunal. Já o Ministério de Matos Fernandes e de João Galamba, que tem a pasta da energia, disse nada ter a dizer sobre este assunto. Das Finanças não houve resposta até ao momento.
O risco orçamental que representa uma descida forçada do IVA e a negociação com a Galp sobre a contribuição correm, por enquanto, em pistas paralelas: uma coisa é o estudo de alternativas à descida do IVA, outra é o eventual acordo com a Galp. Mas no final das contas, as duas questões podem vir a encontrar-se para produzir um resultado que permita reduzir os preços da eletricidade sem sacrificar as receitas fiscais. Mas para isso é necessário que se obtenham progressos rapidamente, até 16 de dezembro. Se não, um eventual acordo com a Galp só produziria efeitos para as tarifas da eletricidade de 2021.
A proposta de Orçamento do Estado será apresentada no mesmo dia em que a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) tem de fechar os preços da eletricidade para o próximo ano. E até há pouco tempo, o Estado nem sequer tinha transferido para o setor elétrico a verba que ficou acordada no ano passado e que corresponde a dois terços da contribuição extraordinária cobrada este ano. A proposta da ERSE que aponta para uma descida de 0,2% das tarifas da eletricidade no próximo ano inclui essa verba.
Fonte oficial do regulador refere ao Observador que “o processo de definição tarifária está ainda em curso, pelo que os todos os pressupostos relacionados com a fixação das tarifas para 2020 serão conhecidos quando a ERSE tomar a decisão final”.
Falta também saber que contrapartidas estarão em cima da mesa para convencer, neste caso, a Galp a mudar de comportamento em relação a CESE. No ano passado, a empresa terá posto em cima da mesa uma condição que o Governo não aceitou e que passava pela resolução de um diferendo com o regulador sobre as avaliação dos ativos de gás natural, no qual a Galp reclama uma alteração do método de cálculo das tarifas de gás. O cenário de um acordo que implique algum tipo de perdão dos valores por cobrar da CESE também foi afastado por uma fonte conhecedora das conversas. Sendo assim, pode estar em causa algum compromisso sobre a redução do valor a cobrar no futuro ou até um calendário para extinguir esta contribuição, muito atacada pelas empresas do setor.
Nas negociações com a EDP realizadas no ano passado, a elétrica aceitou voltar a pagar a CESE mediante duas condições: que o grosso das receitas fosse usado para baixar o défice tarifário e reduzir os custos do sistema, o que até 2018 não acontecia, e que o valor da CESE fosse baixando à medida que o défice tarifária encolhia. A expetativa do presidente da empresa, António Mexia, partilhada com os analistas na apresentação dos resultados do terceiro trimestre, é a de que o valor da CESE comece a baixar no próximo ano. Sinalizando que o défice tarifário deverá baixar mais 500 milhões de euros em 2020 — para 2.757 milhões de euros — o CEO da EDP considera que a dívida tarifária está bem abaixo do nível alcançado em 2012, pelo que “todas as condições para uma mudança da CESE estão lá”.
Orçamento com calendário apertado
Com o Executivo a tomar posse no final de outubro e com o debate do programa do Governo pelo meio, as negociações sobre o Orçamento começaram apenas nas últimas semanas e com um calendário apertado por culpa de… António Costa. Foi o próprio primeiro-ministro quem falou na vontade de avançar rápido com a entrega — adiada este ano por causa das legislativas –, apontando como meta entregar a proposta do Governo na Assembleia da República ainda este ano. O Presidente da República veio acelerar ainda mais os prazos ao falar publicamente na data de 15 de dezembro. Ficou a 16.
Entre os parceiros com que o Governo procura ter a maioria parlamentar necessária para aprovar a proposta de OE, o aperto dos prazos é notado. Na segunda-feira, Catarina Martins deixou um reparo, quase entre vírgulas, ao dizer que a negociação ainda está numa “fase excessivamente preliminar”. No PCP também se estranha o calendário, que vai deixar a proposta muito tempo nas mãos dos partidos até que o primeiro dos ministros, o das Finanças, apareça no Parlamento para a primeira audição sobre o Orçamento. Ao contrário do que é costume, sobrará tempo para preparar esse confronto com os ministros.
Mas o calendário também encurta o tempo para debater propostas de todas as partes e acertar a proposta final, deixando mais poder para o ministro das Finanças. É isso que se está a verificar nas últimas semanas, com algumas críticas setoriais a surgirem dentro do Governo. “A negociação é mais difícil tendo em conta que o processo é mais curto, com um calendário mais apertado que torna a gestão da informação e do tempo mais difícil”, diz fonte do Executivo que admite que tudo isto “cria pressão maior” sobre a negociação. “Já para não falar no contexto político que também é diferente”, remata a mesma fonte apontando a ausência de acordos escritos e de coordenadas concretas e previamente acordadas para esta negociação sempre delicada e para a qual o PS continua a precisar do mesmo apoio parlamentar que no passado.