A morna, cantiga crioula que surgiu há 200 anos entre as ilhas cabo-verdianas da Boa Vista e da Brava, influenciada pela modinha luso-brasileira, com letras de saudade e amor, espera ser classificada já esta quarta-feira, em Bogotá, Património da Humanidade.

Considerada popularmente “música rainha” de Cabo Verde, como recorda “Nôs morna”, uma das mais conhecidas mornas, de Manuel d’Novas, o dossiê da sua candidatura a Património Imaterial Cultural da UNESCO, com mais de mil páginas e cerca de 300 entrevistas, foi formalmente entregue em 26 de março de 2018 e já em novembro passado teve a aprovação da comissão de peritos daquela organização.

A decisão final sobre a ratificação da classificação será tomada durante a 14.ª reunião anual do Comité Intergovernamental para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), que se realiza a partir desta segunda-feira, e até sábado, em Bogotá, Colômbia.

Fonte da UNESCO explicou à Lusa que o Comité “deverá examinar a nomeação de Cabo Verde provavelmente na quarta-feira”, acrescentando que “normalmente as decisões são tomadas por consenso, sem votação”. Além da morna de Cabo Verde, o comité vai analisar a ratificação de outras 41 candidaturas (incluindo de Portugal e do Brasil).

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A delegação cabo-verdiana que participa a partir desta segunda-feira nestas reuniões é liderada pelo ministro da Cultura e das Indústrias Criativas, Abraão Vicente, integrando ainda músicos locais. Questionado pela Lusa antes de partir para a Colômbia, o governante confessou a expetativa por uma das notícias mais aguardadas desde a independência de Cabo Verde.

“É o sentimento de que o trabalho preliminar já foi feito e a expetativa de poder mandar ao senhor primeiro-ministro, que é quem comunicará oficialmente ao país essa notícia, a boa notícia no dia 11 ou 12 [de dezembro]”, admitiu Abraão Vicente.

De acordo com o dossiê da candidatura, a morna terá surgido no século XIX, não sendo consensual a origem do nome e ilha onde nasceu: Boa Vista ou Brava.

Marcada pelas letras do poeta Eugénio Tavares (ilha da Brava, 1867 – 1930) e mais de tarde de Francisco Xavier da Cruz ou ‘B.Léza’ (ilha de São Vicente, 1905 – 1958), a morna conheceu o seu expoente maior fora de Cabo Verde através da cantora Cesária Évora (1941 – 2011), que através da música abriu as portas do mundo a um país de pouco mais de meio milhão de habitantes.

A morna surge de uma mistura de estilos musicais com fortes raízes africanas, o landum, com as influências da modinha luso-brasileira, recorda o dossiê de candidatura a Património Imaterial Cultural da UNESCO.

Uma das referências escritas mais antigas sobre a morna conta de um livro do oficial da marinha russa Konstantin Staninkovitch, que visitou Cabo Verde em 1861. “A morna é uma prática musical que se estrutura em três dimensões: melodia, poesia e dança, caracterizando-se pelo compasso quaternário, ritmo lento e predominância dos esquemas tonais menores clássicos perfeitos de influência europeia”, lê-se ainda no dossiê.

Interpretada em crioulo cabo-verdiano por uma voz solista, homem ou mulher, apesar de existirem também mornas apenas instrumentais, e versando temas “lírico-passionais, produz-se uma canção melancólica, muito vinculada ao sentimento do amor, ao sofrimento, à saudade, à ternura, à tristeza, à ironia e à boa ou má sorte do destino individual”. Geralmente acompanhada por viola, cavaquinho, violino e piano, o “instrumento de excelência da morna” é o violão, introduzido em Cabo Verde no século XIX.

A candidatura de Cabo Verde é desde logo alicerçada na cultura popular que manteve viva a morna até aos dias de hoje, alimentada por músicos e interpretes de todas as idades.

O próprio dossiê levado à UNESCO conta com 77 declarações individuais de consentimento e apoio, de instrumentistas, compositores e interpretes de morna, até artesãos e construtores de instrumentos de corda. É o caso de “Zé di Guida”, natural do Fogo, nascido em 1925 e que em 2017 era considerado o mais antigo músico de morna no ativo, ou de António Félix Lopes de 45 anos e cantor desde os oito, que diz, na sua declaração, ter em seu poder o “maior acervo discográfico de mornas”, o qual “tenciona usar para a promoção e divulgação” da mesma.

Adi Grandão, outro músico, de 36 anos, diz na sua declaração sobre a candidatura da morna: “Expressa tudo o que é sentimento do cabo-verdiano, tanto alegria, tristeza, saudade”. Já para Violinista Admir Borges, de 37 anos, “a morna é a rainha da nossa cultura e reflete o que nos somos como cabo-verdianos”.

O dossiê cabo-verdiano contou com o apoio técnico de Portugal e com a colaboração do antropólogo Paulo Lima, especialista português na elaboração de processos de candidatura a Património Imaterial da Humanidade da UNESCO, como o fado, o cante alentejano e a arte chocalheira.