(Artigo republicado por altura da morte de Fernando Lemos, em dezembro de 2019)

Título: Fernando Lemos designer
Textos: Francisco Homem de Mello, Bárbara Coutinho e Nuno Gusmão
Design: Homem de Mello & Troia Design
Editores: MUDE e Imprensa Nacional
Páginas: 240, ilustradas
Preço: 30 €

Bárbara Coutinho, directora do Museu do Design e da Moda, prometeu e cumpriu: pela primeira vez em Portugal, uma exposição sobre o trabalho de designer de Fernando Lemos, sobretudo reconhecido como fotógrafo e um pouco conhecido como pintor. O artista plástico português, de 93 anos e residente no Brasil desde 1953, veio em Julho a Lisboa para um invulgar ciclo concentradíssimo de realizações que são prova provada da versatilidade das suas capacidades e linguagens artísticas (a poética incluída), da sua própria longevidade criativa, mas também do apreço que um museu, duas galerias de arte, dois editores, uma autarquia e um hotel — o Casa Rosa, do Porto — quiseram manifestar-lhe em uníssono, numa raríssima forma de reencontro e festa. A presente monografia-catálogo — que é bilingue, com todas as vantagens que isso tem para o conhecimento internacional do design de portugueses — é, salvo erro, a primeira consagrada a um artista de naturalidade portuguesa que fez obra revelante noutro país (inclusivamente representando-o muitas vezes) — não um país qualquer, mas aquele com o qual Portugal tem mais profundos laços identitários, muito para além da língua comum, como é evidente. Em momento propício a balanços, sou até impelido a dizer que este é um dos livros do ano, e a exposição na Cordoaria Nacional uma das exposições mais marcantes de 2019.

E se tudo isso não fosse já suficientemente bom, e raro, negociação em curso — e bem encaminhada, segundo parece — com a Fundação Calouste Gulbenkian perspectiva para o futuro próximo uma exposição sobre Fernando Lemos e o Japão, revirando velhos arquivos do artista e mostrando materiais inéditos produzidos durante a sua estadia do ano 1963 naquele fascinante país, tornada possível por uma bolsa desta fundação para estudar caligrafia nipónica, e que tão profundamente — e eu diria previsivelmente — influenciou o pintor. Duas fotografias “japonesas” incluídas no livro lançado neste verão pela Imprensa Nacional foram pela primeira vez vistas em Portugal. Além disso, há também a expectativa de que parte da biblioteca do artista venha a ser doada à Biblioteca de Arte da Gulbenkian, com toda a vantagem que tal pode trazer para uma representação artística brasileira em sede privilegiada como nenhuma outra no nosso país, abrindo finalmente portas a uma aproximação comparativa que tarda por inépcia das instituições públicas. (A Biblioteca Nacional não compra — melhor dito: não tem como comprar — sequer revistas brasileiras de excelência, como Serrote e Piauí, quanto mais tudo o resto que de tão assinalável a par e passo vai sendo feito num país cuja fertilidade e notoriedade culturais vão muito à frente das suas entorses políticas ou ideológicas, um sarilho que tem agora inspiração religiosa e de alarmante gravidade.)

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É bem verdade que os “trabalhos gráficos” de Fernando Lemos não se iniciariam no Rio de Janeiro ou em São Paulo, onde fixou residência definitiva. Como disse a Jorge Silva Melo no documentário Como, não é retrato? (Midas, 2017), a experiência transversal num atelier partilhado numas águas-furtadas na Avenida da Liberdade, em Lisboa, introduziu o jovem pintor e fotógrafo, que aliás estudara e praticara litografia industrial, ao desempenho habitual das artes gráficas, e são já de grande qualidade os pequenos catálogos da Galeria de Março (1952-53), ao Chiado, a capa da Pentacórnio, dirigida por José-Augusto França (1956), e muito especialmente o lay-out, capa e ilustrações do livro de poemas de Adolfo Casais Monteiro Voo sem Pásssaro Dentro (1954). Mas foi sem dúvida ao integrar-se rápida e profundamente nos meios artísticos e institucionais cariocas e paulistas, em anos de resto de forte viragem estética, que ele conseguiu expandir mais livre e abertamente a sua criatividade pelas “paisagens gráficas variadas” a que se refere o reputado curador da exposição. Chico Homem de Melo reconhece em Lemos “um caso raro de criador marcadamente intelectualizado que se manteve distante da academia”, que por isso deve ser tido em conta como “contraponto necessário e urgente” ao cenário global dos dias de hoje, em que “posturas normativas predominam no ensino e na prática do design, e obedecer-lhes virou sinónimo de qualidade projectual” (p. 23).

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Mostra-nos também e com especial evidência que em alguns dos célebres retratos fotográficos de escritores e artistas com que Lemos conviveu em Lisboa — e o do actor Jacinto Ramos (p. 47) é o máximo exemplo disso — “a combinação de fotogramas segue um cuidadoso arranjo diagramático”. Dizer-nos que já ali “o olhar do designer gráfico alimenta o olhar do fotógrafo” (p. 46) representa uma abordagem nova do trabalho ao qual por demasiado tempo Lemos ficou vinculado na apreciação portuguesa da sua obra.

Avança no livro, de surpresa em surpresa, até quem possa ter estado mais ou menos atento às pequenas letras das notas biográficas do artista e poeta incluídas nas páginais finais de catálogos de exposições e livros editados por cá, ou saiba algum tanto do que ele fez por lá. “A vida melhor” a que Lemos, como português, buscou em terras distantes, gerou “um arquipélago” — a expressão é de Bárbara Coutinho (p. 15) — de notáveis realizações que o colocam sem dúvida num patamar muito elevado no contexto do design gráfico brasileiro das décadas de 60 em diante. E isso não é pouco, caramba. Não é só a impactante fachada do pavilhão brasileiro na feira comercial de Tóquio em 1963, em que a palavra Brasil é radicalmente abstractizada num “quase-logótipo” ou bandeira do país (v. pp. 56-57), é também o facto de ter sido ele a criar o grafismo da revista da Associação Brasileira de Desenho Industrial Produto e Linguagem (certamente um encargo disputado e de prestígio), ter assinado a capa de Re-visão de Kilkerry do carismático Augusto de Campos (1970), ou renovado o livro infantil com a colecção Giroflé-Giroflá, com os sugestivos A televisão da bicharada (1962) e Sexo e Educação — é natural (1969).

À parte isso, Lemos foi mantendo presença como ilustrador no poderoso suplemento de artes e letras do jornal de grande formato Estado de São Paulo, com geometrias que levou também para o capismo de livros com cromatismo vibrante, para a Revista Geral de Discos Long Playing fabricados no Brasil e para os catálogos da galeria Arte Global, da Rede Globo de Televisão. O seu intrínseco vanguardismo experimental está bem patente nos pictogramas desenvolvidos para os livros O Mistério do Ouro dos Martírios. Desvendando o grande segredo das bandeiras paulistas (1960; p. 79) e Plano Urbanístico Básico de São Paulo (1969; pp. 99-103), tanto quanto na dimensão táctil do catálogo da exposição A Renda através dos Tempos, de 1962, um dos seus primeiros trabalhos de pesquisa e valorização da chamada arte popular.

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E claro, como é bem sabido, Fernando Lemos pôs os seus serviços gráficos ao dispor da oposição a Salazar instalada no Brasil, da editora de Victor Cunha Rego ao jornal Portugal Democrático, onde retomou a figuração em desenhos políticos de primeira página que continuaram para além de Abril de 1974. Todavia, a grandeza, variedade — e quiçá prestígio público — da sua obra, que agora reconhecemos pela primeira vez e também incluiu muralismo, cerâmica, vitralismo, tapeçaria e têxtil, faz recuar a sua militância política para um segundo plano artístico. De outra forma, aliás, não seria compreensível que, sendo ele muito facilmente identificável como oposicionista, lhe tivessem sido aprovadas três tapeçarias de grandes dimensões (4,61 x 4,49 m) para as lojas da TAP no Brasil (1964), oito anos depois de o projecto vencedor do concurso para o monumento ao infante D. Henriques em Sagres, pelo irmão de Sophia o arquitecto João Andresen, também claramente desafecto ao regime, ter sido liminar e escandalosamente chumbado por Salazar. Em contrapartida, parece esquisito que tendo sido autor dum magnífico painel cerâmico para a Estação Brigadeiro da linha paulista de metropolitano, em 1990-91, Fernando Lemos não tivesse sido incluído no lote de artistas portugueses que renovaram as estações do Metropolitano de Lisboa.

Num depoimento de Abril de 2000, “Pequena diáspora lusitana”, Eduardo Lourenço escreveu: “De todas as aventuras em terras de Santa Cruz a do poeta, pintor e fotógrafo Fernando Lemos parece, malgrado a rebeldia e a originalidade da personagem, a mais ‘clássica’. Fernando Lemos veio realmente para o Brasil para ficar e ficou. […] Aqui se revelou um pintor de visão original, amoroso do grafismo oriental, e se tornou, também, um grande fotógrafo. […] A diáspora tornou-se nele vida nova” (Tempo Brasileiro. Fascínio e Miragem, Fundação Gulbenkian, 2018, pp. 310-11). Duas décadas depois desta errónea descrição da obra plástica de Fernando Lemos no Brasil, e por quem aparentemente estaria em boas condições de evitá-la, este livro de Bárbara Coutinho e Chico Homem de Melo tem o valor dum resgate bem sucedido, que importa elogiar muito e guardar na estante com a admiração e a gratidão que nos merece. Well done!