Título: Essa Gente
Autor: Chico Buarque
Editora: Companhia das Letras
Ano da Edição: novembro de 2019
Páginas: 194
Preço: 15,90€
O novo livro de Chico Buarque começa com um pedido de desculpas. Numa carta datada de 30 de novembro de 2018, o protagonista de Essa Gente, o escritor Manuel Duarte, diz ao seu editor que não se esqueceu das suas obrigações, que sabe que devia ter entregado os originais do seu novo livro há três anos e que se encontra muito aflito com toda a situação. Mais aflitiva ainda é a sua situação financeira, à qual se associa uma profunda crise pessoal, provocada pela separação recente que os “recentes acontecimentos do nosso país” só acentuaram. Não há condições de trabalho, não há dinheiro, mas Duarte promete isolar-se e tratar de acabar o romance de uma vez por todas se o editor lhe adiantar “mais uma parcela” dos seus “royalties”, o que naturalmente não acontece.
É sobre estas e outras tragédias da vida de Duarte, onde se cruzam gentes tão diferentes que nem se percebe como cabem todas na mesma vida, que fala o novo livro de Buarque que, tal como a sua personagem, não entregava um novo manuscrito há anos (o último livro, O Irmão Alemão, é de 2014). Estas são contadas sob a forma de um diário que, no início, anda para trás e para a frente abrindo portas a outros protagonistas além do escritor falido e falhado. A narrativa estabiliza mais ou menos a partir da página 40, e o texto torna-se mais fluido, permitindo ao leitor entrar mais facilmente na história de Duarte, na sua tentativa de acabar um romance que lhe permita sustentar-se e nas suas inúmeras paixonetas que incluem uma ex-mulher, uma mulher prestes a ser ex e a mulher holandesa e sardenta de um nadador salvador possessivo.
A par da luta diária para conseguir acabar um livro condenado a nunca ser escrito (será que Buarque passou pelo mesmo?), e sobre o qual paira a sombra do único bom livro que Duarte alguma vez escreveu — o romance histórico O Eunuco do Paço Real —, as paixões do escritor constituem o miolo central de Essa Gente. Duarte ora está com Denise ora anseia por Rebekka, enquanto, no meio de toda esta confusão, parece desejar o conforto que representa Maria Clara, a ex-mulher tradutora de quem teve um filho e uma autora mais provável de O Eunuco do Paço Real (era ela, com a sua certa tendência para acrescentar um ponto onde antes não havia nenhum, que revia os textos do então marido).
Maria Clara, Denise e Rebekka fazem parte do mosaico de personagens de Essa Gente, um espelho do Rio de Janeiro. Aliás, se este livro fala de alguma coisa, essa coisa é o Rio, cujas subtilezas e complexidades, mas também virtudes e defeitos surgem refletidos nas personagens que Chico Buarque criou. Não deixa de ser interessante que, na entrada de 20 de fevereiro de 2019, Duarte lamente ser incapaz de deixar de amar a cidade onde nasceu, assim como é incapaz de deixar de amar a mãe que o abandonou e o trocou por mil e uma aventuras: “Apesar de tudo, assim como venero a mulher incauta que me deu à luz, estarei condenado a amar e cantar a cidade onde nasci”.
O tempo de Essa Gente é o de agora — sabemo-lo pelas datas das entradas do diário —, um facto que tem sido repetitivamente apontado pelos críticos, mas que não é assim tão importante para o desenrolar da ação. Os problemas sociais — inevitavelmente presentes, não fosse este um retrato do Rio — são o pano de fundo do pano de fundo, que é levantado apenas por alguns breves instantes ao longo de todo o livro. Não são escondidos ou ignorados, é certo, mas também não são condenados. Isso acontece, por exemplo, quando um velho conhecido de Duarte, Fúlvio, espanca um sem-abrigo junto ao clube privado que frequenta, ou quando o cão da ex-mulher do escritor devora um jornal que noticia a morte a tiro de um músico negro pela polícia. Tudo é encarado com normalidade — a favela, a violência, a insatisfação social de Maria Clara que a leva a partir para Lisboa — e apresentado com subtileza tal que é difícil dizer que houve uma segunda intenção.
Tentar fazer a ponte entre Duarte e o estado atual do Brasil soa igualmente forçado. O fim do escritor desgraçado é ainda mais desgraçado, e podemos ver aí um sinal de pessimismo. Mas será que é mesmo? Tanto amor desencontrado soa mais a enredo de telenovela do que a crítica social. E se a crítica, por que todos esperavam depois da polémica em torno da atribuição do Prémio Camões, era o objetivo de Buarque, usar um escritor para esse fim não é propriamente original. A história de um escritor que escreve sobre outro escritor deve ser das mais antigas da História. Depois, há a questão de esta não ser a primeira vez que Buarque cria uma personagem que também se dedica à escrita. Fez precisamente isso em Budapeste, o seu terceiro e muito elogiado romance sobre José Costa, um ghost-writer talentoso, que lhe valeu o Prémio Jabuti em 2003.
Tudo isto terá sido, e muito provavelmente foi, uma escolha deliberada de Chico Buarque. Mas a escolha foi arriscada — ao preferir a subtileza à clareza, fez com que as paisagens reais fossem engolidas pelas ficcionais e a reflexão ficasse para depois. Essa Gente vale sobretudo pelas personagens curiosas que apresenta, que têm tanto de divertidas como de trágicas, e pela forma como Buarque trabalha a ficção dentro da própria ficção. O livro, no seu todo, está, contudo, muito longe dos seus melhores trabalhos.