Com mais ou menos gralhas no relatório do Orçamento do Estado, Mário Centeno voltou esta terça-feira a recusar a ideia de que exista um aumento da carga fiscal para 2020, rejeitando uma vez mais que se deva ter em conta as contribuições sociais quando se calcula o peso dos impostos sobre a riqueza produzida pelo país. Segundo a tese de Mário Centeno, a carga fiscal em 2019 e em 2020 seria de apenas 25,1% do PIB. Mas, segundo os cálculos usados unanimemente pelas instituições nacionais e internacionais (ou seja, somando as receitas fiscais e as contribuições sociais), a carga fiscal sobe. Aliás, depois de corrigidas as várias gralhas da primeira versão do Orçamento até sobe mais do que inicialmente previsto: como o Observador explicou aqui, passa de 34,9% do PIB em 2019 para 35,1%.
Esta é uma saga antiga — já em 2015 foi memorável a tentativa do deputado comunista Paulo Sá, do PCP, de explicar o aumento da carga fiscal usando peças de Lego — mas Centeno trouxe, logo no início de 2016, após a apresentação do seu primeiro Orçamento, um conceito diferente para a carga fiscal.
O ministro das Finanças refutou as acusações dos partidos à direita, dizendo que havia “uma redução clara naquilo que é o peso das receitas fiscais sobre o PIB”, em 0,2 pontos percentuais. Isto porque, para o ministro das Finanças, para as contas da carga fiscal deveriam contar apenas as receitas fiscais.
A ideia de Mário Centeno seria refutada pela oposição e, dentro da própria bancada parlamentar do PS, pelo economista Paulo Trigo Pereira, eleito então como independente nas listas socialistas: a carga fiscal, como é aceite internacionalmente, leva em conta também as contribuições sociais (por via da Taxa Social Única). E, portanto, haveria não uma diminuição, mas um ligeiro aumento de 0,1%, na carga fiscal.
Logo nesse ano, seriam publicadas não uma, mas duas erratas ao Orçamento de Estado (aquele que já estava em execução). Num dos relatórios revistos, a Direção Geral do Orçamento (sob a alçada de Centeno) esclarecia mesmo em nota de rodapé (página 34) que, afinal, “a carga fiscal consiste no somatório da receita fiscal, da receita contributiva e do imposto de capital”, contrariando, assim, o conceito mais estrito do ministro das Finanças.
Usando o conceito vigente nas contas nacionais — e desprezando as metodologias do ministro das Finanças —, o Instituto Nacional de Estatística (INE) foi confirmando, a cada ano, novos recordes na carga fiscal. Quanto aos números de 2018, porém, surgiu já este ano uma revisão em alta do PIB que fez baixar a carga fiscal do ano anterior, embora continuemos a falar dos valores mais elevados de sempre.
Pressão fiscal global, “uma inovação no debate público”
Esta não foi, porém, a única inovação de Mário Centeno no debate em Portugal sobre o polémico conceito. Um segundo capítulo foi aberto já em abril deste ano — depois de o INE ter divulgado mais um recorde da carga fiscal —, com o ministro das Finanças a defender que se devem levar em conta os défices gerados nas contas públicas, porque “é importante saber não apenas que impostos se cobram em cada ano, mas também a parte da despesa que fica para pagar no futuro”. E deu-lhe um nome: “pressão fiscal global”.
“Julgar a carga fiscal sobre os contribuintes apenas pela receita fiscal de um ano resulta numa medida parcial e imprecisa”, escreveu então o gabinete das Finanças. Com este indicador alternativo, o peso dos impostos no PIB seria inferior. O problema? Ninguém usa o indicador de Mário Centeno.
Depois da Anita, Centeno mostra o gráfico “pacman” da carga fiscal
Em antecipação às eleições de outubro, o Observador entrevistou o economista Miguel St. Aubyn, do Conselho de Finanças Públicas, para esclarecer o “economês” da campanha eleitoral, e o especialista notou, precisamente, que o conceito que tinha sido usado em abril por Mário Centeno “foi uma inovação no debate público”.
O economista do CFP reconhece pontos de contacto com uma teoria económica — a “equivalência ricardiana”, proposta pelo economista David Ricardo — mas “tem sido considerada uma curiosidade teórica”, sem reflexo em indicadores palpáveis e que permitam a comparação internacional.