O futebol vive muito de profecias. De regressos ao passado para recordar o que um treinador disse em certa altura, o que um jogador apontou como certo ou impensável, o que um dirigente tentou prever. De forma quase inevitável, surge um momento em que uma frase dita há semanas, há meses ou até há anos, se torna relevante. Para Jorge Jesus, o momento capital da maior profecia da carreira chegava este sábado.

No primeiro dia de junho de 2019, há mais de seis meses, Jorge Jesus estava no relvado do Wanda Metropolitano, em Madrid, prestes a assistir à muito antecipada final da Liga dos Campeões entre o Liverpool e o Tottenham. Tinha sido, naquele em dia e de forma muito mediática, anunciado enquanto novo treinador do Flamengo, o clube brasileiro que ele próprio dizia ser “um dos maiores do mundo”. E em Madrid, de forma ambiciosa mas muito descomplexada, garantiu que aquela final da Liga dos Campeões poderia ser muito importante para o futuro da temporada do Flamengo. Porque o eventual vencedor estaria em dezembro, no Mundial de Clubes, e seria o grande favorito a chegar a essa final internacional — onde o Flamengo só estaria em caso de vitória na Libertadores.

Ficha de jogo

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Liverpool-Flamengo, 1-0

Final do Mundial de Clubes

Khalifa International Stadium, em Doha, no Qatar

Árbitro: Al Jassim Abdulrahman (Qatar)

Liverpool: Alisson, Alexander-Arnold, Gomez, Van Dijk, Robertson, Henderson, Naby Keita (Milner, 100’), Oxlade-Chamberlain (Lallana, 75’), Mané, Salah (Shaqiri, 120’), Firmino (Origi, 105’)

Suplentes não utilizados: Adrián, Lonergan, Wijnaldum, Milner, Jones, Hoever, Elliott, Van den Berg, Williams

Treinador: Jürgen Klopp

Flamengo: Diego Alves, Rafinha, Rodrigo Caio, Pablo Marí, Filipe Luís, William Arão (Berrío, 120’), Gerson (Lincoln, 102’), Éverton Ribeiro (Diego, 82’), Arrascaeta (Vitinho, 77’), Bruno Henrique, Gabriel Barbosa

Suplentes não utilizados: Gabriel Batista, César, Rodinei, Rhodolfo, Matheus Thuler, René, Reinier, Piris da Motta

Treinador: Jorge Jesus

Golos: Roberto Firmino (99’)

Ação disciplinar: cartão amarelo para Mané (45+1’), Salah (80’), Vitinho (88’), Roberto Firmino (100’), James Milner (105’), Diego (112’)

Há seis meses, quando a atualidade desportiva em Portugal ainda não tinha virado o azimute para o Flamengo e para Jorge Jesus, quando o Brasil ainda olhava com muita desconfiança para a contratação do treinador português, quando o clube do Rio de Janeiro ainda via a época sem grandes ambições, as declarações do técnico foram interpretadas enquanto desproporcionadas. Seis meses depois, tal como Jesus tinha antecipado e tal como em 1981, o Flamengo encontrava o Liverpool na final do Mundial de Clubes. Para a profecia ficar completa só faltava o resultado que Zico alcançou há quase 40 anos, quando venceu Kenny Dalglish e companhia por 3-0.

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Este sábado, Flamengo e Liverpool surgiam na final do Khalifa International, no Qatar, depois de terem eliminado respetivamente Al-Hilal e Monterrey nas meias-finais. Mas, mais do que isso, Flamengo e Liverpool surgiam na final do Mundial de Clubes com um mindset totalmente distinto. Os brasileiros tiveram várias semanas para preparar a participação na competição, durante um período pós-Libertadores que se arrastou ao longo de uma reta final do Brasileirão feita já a meio gás, e encaravam o encontro deste sábado como a possibilidade de tornar a temporada ainda mais bem sucedida e regressar ao Brasil, novamente, enquanto heróis. Já os ingleses estão a meio de uma época bem encaminhada a nível interno, destacados na liderança da Premier League, mas vivem nesta altura uma fase de overbooking no calendário e foram mesmo criticados por uma franja de adeptos que preferia que Klopp tivesse dado prioridade ao jogo da Taça da Liga, na terça-feira, do que ao Mundial de Clubes.

Van Dijk esteve lesionado nos últimos dias mas acabou por conseguir recuperar para a final

Jorge Jesus apresentava-se com o onze tipo do Flamengo: o onze que foi titular na meia-final do Mundial de Clubes, que foi titular nas meias-finais da Libertadores e também na final da competição continental, contra o River Plate. Já Jurgen Klopp era obrigado a fazer duas alterações àquela que é a equipa titular habitual, face à lesão de Lovren e às dificuldades físicas de Wijnaldum, e escolhia Joe Gomez e Oxlade-Chamberlain para os substituir. Depois de fazer muitas poupanças na meia-final contra o Monterrey — e de se ver desprovido de Van Dijk, que esteve indisponível nos últimos dias mas acabou por recuperar para a final –, o treinador alemão voltava a lançar o trio Salah-Firmino-Mané e o lateral Trent Alexander-Arnold no onze. E no Qatar, em Doha, encontravam-se duas equipas que assentam na transição ofensiva e na busca pela profundidade, o que antecipava desde logo uma final bem disputada.

O Liverpool entrou melhor, a criar duas grandes oportunidades ainda dentro do primeiro quarto de hora: Roberto Firmino atirou por cima logo nos primeiros segundos (1′) e Naby Keita, servido por Salah, também falhou por pouco a baliza de Diego Alves (12′). Em ambos os lances, a equipa inglesa mostrava desde logo aquele que seria, por excelência, o seu plano de ação a nível ofensivo — explorar as costas da defesa brasileira, com passes longos à procura da profundidade, e pedir a velocidade e a explosão de Salah e Mané. O Flamengo demorou alguns minutos a habituar-se às transições adversárias que rasgavam toda a largura da defesa brasileira, até porque entrou na partida com uma linha inicial de construção muito subida, mas a resistência às primeiras oportunidades acabou por refrear o ímpeto embrionário dos ingleses.

A partir do primeiro quarto de hora, o Flamengo soube começar a reter de forma mais prolongada a posse de bola, de forma a rendilhar o jogo até chegar à grande área de Alisson. A bem organizada defesa do Liverpool, porém, conseguia impedir que a equipa de Jorge Jesus chegasse de forma orientada ao último terço inglês. A densidade do quarteto comandado por Van Dijk só foi comprometida através da grande mobilidade de Bruno Henrique, que passou a primeira parte a alternar entre atuar mais junto à linha ou de forma mais interior, trocando sempre com Arrascaeta. O jogador brasileiro ameaçou primeiro com um bom lance pela esquerda, cruzando depois para a defesa do Liverpool aliviar (23′), e depois ganhou na velocidade a Joe Gomez e atirou à malha lateral da baliza inglesa (26′).

Na ida para o intervalo e ainda sem golos, ficava a ideia de que o Flamengo estava totalmente confortável na partida, a fazer tudo aquilo que lhe é naturalmente intrínseco e sem sair fora dos habituais mecanismos: a equipa de Jorge Jesus estava a aplicar o habitual jogo de paciência, a resgatar a posse até conseguir entrar nas costas da defesa adversária, e Bruno Henrique terminava a primeira parte com mais remates a nível pessoal do que o Liverpool tinha enquanto conjunto (fator que acabava por compensar um Gabigol ainda algo apagado).

Num início de segunda parte quase tirado a papel químico daquilo que foi o início da primeira, o Liverpool regressou do balneário novamente com vontade de abrir o marcador e ficou muito perto de o fazer. Roberto Firmino acertou no poste depois de uma jogada brilhante dos ingleses (47′) e Salah atirou ao lado, de primeira, após mais um dos passes de Trent Alexander-Arnold a partir da direita (50′). Face ao arranque forte do Liverpool, a equipa de Jorge Jesus conseguiu fazer algo semelhante àquilo que havia feito na primeira, empurrando o adversário para trás para conseguir construir de forma ponderada e tranquila desde o próprio meio-campo. Com um Gabigol mais entrosado nas dinâmicas ofensivas da equipa, o Flamengo ficou perto de marcar precisamente por intermédio do avançado, que primeiro rematou por cima (52′) e depois viu Alisson roubar-lhe o golo com uma grande defesa (54′).

Ainda assim, e apesar das semelhanças claras com a primeira parte, o segundo tempo apresentou-se desde logo mais imprevisível, com as linhas quebradas e uma escassez de regras táticas que acabava por tornar o jogo mais irrequieto. Mesmo com uma acalmia quase inevitável que apareceu após o primeiro quarto de hora da segunda parte, a ausência de espaços permitidos de parte a parte não impedia a busca dos dois lados pela profundidade e pela velocidade dos homens mais adiantados. O Flamengo, ainda assim, controlou as ocorrências durante praticamente toda a segunda parte: o conjunto de Jorge Jesus estava irrepreensível a nível defensivo e segurou sempre a posse de bola, asfixiando as investidas ofensivas do Liverpool com uma boa reação à perda que deixava surpreendidos os jogadores de Jurgen Klopp. Keita não tinha espaço para desequilibrar no meio-campo, Chamberlain esteve sempre algo desligado das ocorrências e nem Salah, nem Firmino nem Mané eram alimentados com bolas a partir de trás.

O aproximar do final dos 90 minutos — e as substituições, já que Jesus lançou Vitinho e Diego e Klopp optou por Lallana para substituir um lesionado Chamberlain — acabou por trazer algum desgaste aos combativos defesas do Flamengo, que permitiram um certo ascendente inglês nos últimos minutos. Diego Alves evitou um grande golo de Henderson (84′) mas o drama estava guardado para os descontos: tal como na final da Libertadores para o Flamengo e tal como já na meia-final deste Mundial de Clubes para o Liverpool. O árbitro da partida assinalou grande penalidade de Rafinha sobre Mané, numa altura em que o avançado seguia isolado para a baliza, mas reverteu a decisão depois de analisar as imagens do VAR e nem sequer marcou falta (que, a acontecer, seria fora de área), retirando também o cartão amarelo ao brasileiro. No final do tempo regulamentar, Liverpool e Flamengo estavam empatados ainda sem golos e levavam a decisão para mais 30 minutos de prolongamento.

O Flamengo ia tentando fazer aquilo que estava a colocar em prática desde o apito inicial, empurrando o Liverpool para a própria grande área, e Jorge Jesus parecia até já pensar mais na defesa da igualdade do que no alcançar da vantagem. O treinador português estava preparado para lançar Piris da Motta, um médio mais defensivo, quando o Liverpool acabou por conseguir finalizar uma transição ofensiva exímia que ainda não tinha mostrado. Henderson recuperou a bola ainda na área de Alisson, combinou com Salah e fez um passe longo para Mané, que segurou face à pressão de Rafinha e serviu Firmino; o avançado brasileiro tirou um defesa e Diego Alves da frente antes de rematar e abriu o marcador com a eficácia que não teve logo nos primeiros segundos da final (99′).

Klopp lançou James Milner de imediato, para oferecer músculo ao meio-campo do Liverpool, e Jesus reagiu ao golo sofrido com a entrada de Vitinho, um avançado, ao invés de Piris da Motta. A partir do golo de Roberto Firmino, o Flamengo não conseguiu evitar uma queda a pique a nível anímico e físico, perdeu discernimento e intensidade e permitiu uma gestão clara por parte do Liverpool, que na segunda parte do prolongamento ainda ficou perto de aumentar a vantagem. No final do prolongamento, o Liverpool venceu o Flamengo, conquistou o Mundial de Clubes pela primeira vez na própria história, ganhou a única competição que faltava no museu e vingou a derrota de 1981, quando Zico afastou o troféu de Dalglish.

Desta vez, e depois da reviravolta histórica e dramática contra o River Plate na final da Taça dos Libertadores, Jorge Jesus perdeu. Perdeu depois de ter sido melhor durante grande parte do jogo, de ter anulado um ataque do Liverpool que é campeão europeu e que está bem encaminhado para ganhar a Premier League e que é tido como o melhor do mundo. O Flamengo, que foi quase inevitavelmente interpretado como o underdog desta final do Mundial de Clubes, foi a melhor equipa durante 120 minutos. E é por isso que Jürgen Klopp disse, ainda na antevisão, que Jorge Jesus seria eleito Presidente do Brasil se se candidatasse. Porque mesmo perdendo, mesmo falhando a conquista do troféu, Jorge Jesus ainda era eleito Presidente.