É uma pergunta recorrente, tanto mais em casos desta natureza: quem aceitaria defender um homem que enfrenta cinco acusações, incluindo as de agressão sexual e violação? O rosto debaixo de fogo é o de Harvey Weinstein, o predador de Hollywood caído em desgraça que começa a ser julgado esta semana em Manhattan, Nova Iorque. E que se apresenta como “inocente”. As queixas apresentadas por Mimi Haleyi e por uma mulher não identificada na sequência de incidentes ocorridos em 2006 e 2013 são dois dos pontos-chaves do processo, enquanto os depoimentos de celebridades como Rose McGowan, Ashley Judd ou Rosanna Arquette ficarão de fora destas contas, já que os respetivos casos terão acontecido fora do estado de Nova Iorque. Annabella Sciorra, no entanto, é uma peça mais recente neste complicado xadrez (ditou mesmo o adiamento do julgamento para janeiro) e poderá ser determinante no desenrolar dos acontecimentos.
Retomando a pergunta do início, a resposta é Donna Rotunno, a mulher que lidera a equipa responsável pela defesa do antigo magnata de Hollywood, composta por seis advogados dispostos a provar que “há demasiadas evidências” que comprovam que as acusações “não chegam ao nível da violação”.
“Ou ela sai do caso como uma rainha ou com um cliente muito insatisfeito”, antecipa o conselheiro Arthur Aidala sobre a missão que a especialista de 44 anos tem pela frente. A resistência, e paciência, serão porventura duas das virtudes decisivas por estes dias, pelo menos a avaliar pelo historial de relações que Weinstein tem mantido com os seus advogados. Quando Rotunno surgiu em cena, Harvey estava a escassa distância de assistir a mais uma baixa, desta vez a desistência de Jose Baez, conhecido por levar a melhor num caso a favor de Casey Anthony. Baez tornava-se então a terceira figura a abandonar Harvey desde que fora formalmente acusado.
Recorde-se que Weinstein saiu em liberdade em maio de 2018, depois do pagamento de uma caução de 1 milhão de dólares (cerca de 858 mil euros) e com pulseira eletrónica, aguardando julgamento desde então. O ex-produtor norte-americano está acusado de violação, crimes sexuais e de abuso e assédio sexual, e a pena pode chegar a prisão perpétua. Desde que foi preso, recorreu a vários nomes de peso para assegurar a sua defesa, muitos deles entraram rapidamente em rota de colisão com o antigo produtor, sofrendo ainda as consequências naturais de verem o seu nome associado a um proscrito.
Benjamin Brafman, por exemplo, um dos homens fortes que acabou por abandonar o barco, recorda os emails recorrentes de Weinstein, o seu estilo “obsessivo e controlador” e a necessidade de atenção 24 horas por dia, algumas das razões para a incompatibilização entre ambos.
Se nenhum dos elementos da atual equipa de defesa do produtor está familiarizado com um caso tão mediático, para Donna esta será certamente uma página crucial na sua carreira. Foi em julho de 2019 que este novo leque de profissionais entrou em campo. Donna, habituada a lidar com casos que envolvem acusações de teor sexual, e os restantes membros, incluindo o colega Damon Cheronis, tinham então pouco mais de dois meses para um julgamento inicialmente agendado para o mês de setembro. Conhecida era já então a postura daquela que foi apresentada como uma poderosa advogada de Chicago sobre o impacto do célebre movimento desencadeado pelo escândalo Harvey Weinstein. “Nunca subscrevi o movimento #MeToo”, sentenciou.
“Acho que o movimento #MeToo trouxe coisas muito boas, mas no final, se o #MeToo rouba os teus direitos básicos e te impede de ter um julgamento justo, então, enquanto advogada de defesa, tenho que dizer que isso é um problema”, voltaria a sustentar mais tarde Rotunno sobre o efeito nocivo de semelhante bola de neve. “Acreditar numa pessoa só porque ela faz uma queixa é problemático para si, para mim e para todos os cidadãos americanos”, continuaria, citada pela Vanity Fair, que traça o perfil e os desafios que tem pela frente uma das caras da R&G Law Group.
Já em dezembro passado, num artigo de opinião na Newsweek, Rotunno acusava os media e os ativistas de terem impedido um julgamento justo do seu cliente. Cliente esse que dias antes, sem consultar a sua advogada, concedera uma entrevista ao New York Post na qual se afirmava como “um homem esquecido”.
A Chicago Mag resume o busílis: “Numa era #MeToo, Donna Rotunno pode facilmente ser vista como uma traidora pela mulheres, mas para os seus clientes é uma heroína”. Recuando no tempo, o perfil profissional revela que nos últimos 15 anos teve em mãos mais de 40 casos relacionados com condutas impróprias do foro sexual, especialidade que a converteu num dos nomes mais procurados neste nicho. “Qualquer caso de topo que leiam nas notícias na zona de Chicago, é muito provável que receba uma chamada telefónica”, descreve Donna, que defendeu nomes como o do jogador de futebol americano Shaun Gayle, que se viu envolvido na investigação do homicídio da sua namorada. Mohammad Abdullah Saleem, um líder islâmico daquela cidade acusado de molestar uma empregada é outra referência no curriculum de Rotunno.
A controvérsia em redor da advogada é especialmente vincada no já abordado capítulo do #MeToo, que segundo Donna terá contribuído em larga medida para o “atropelamento” da reputação do produtor. “Acho que as mulheres são responsáveis pelas decisões que tomam“, apontou desde o início. Mas há mais comentários que deram brado, sobretudo aqueles em que o género é apresentado como um trunfo. Rotunno confessou que se sente habilitada para examinar as diferentes variáveis num caso com “mais malícia” pelo facto de ser mulher. “Tenho mais capacidade para analisar uma mulher em tribunal do que um advogado homem”, adiantou a advogada, descrita ainda como um “bulldog no tribunal”, “extremamente bem preparada e agressiva”, caracteriza o seu antigo cliente, Stanley Stallworth, também ele advogado e antigo parceiro na sociedade Sidley Austin.
“Ela passou a sua vida inteira a representar”. As frases polémicas de uma estratega em saltos saltos
A ironia e sarcasmo de Donna também não são uma novidade. Sobre Annabella Sciorra, a atriz de Sopranos que acusa Harvey de violação em 1993, chegou a dizer que “passou a sua vida inteira a representar”. Rotunno acrescentou ainda que acredita que a acusadora possa ser “uma excelente testemunha” no processo. Não se livrou de nova contestação quando atirou nova frase: “Se não querem ser vítimas não vão para um quarto de hotel”.
Em entrevista ao programa de Gayle King, o This Morning da CBS, deixou no ar mais umas quantas frases polémicas. “Há uma diferença entre pecados e crimes”, defende Donna, elaborando: “Não penso que [Harvey Weinstein] tenha que explicar as acusações. Sabe, sempre que falamos de homens e mulheres em circunstâncias sexuais temos sempre que considerar que há sempre uma zona cinzenta”. A advogada admite ainda que mesmo que o produtor sai vitorioso deste processo, “a sua vida foi arruinada”.
“O meu pai sempre me disse para não me deixar toldar pelas emoções”. É assim que começa um outro artigo assinado pela advogada para a Newsweek em julho de 2019. O título é perentório: “Sou a advogada de Harvey Weinstein e aceitei este caso para vencer”. No mesmo, Donna retoma a ideia de que, se o movimento #MeToo serviu a boa causa de atenuar as desigualdades entre homens e mulheres, também serviu para alertar a definição de liberdade de expressão. “Agora, o discurso só é livre se mimetizar o sentimento do público”.
“Alta, confiante, e impecavelmente vestida com um fato de designer, com um semblante ao mesmo tempo carinhoso e duro”, definiu um dos seus clientes. Em 2014, o criador Elhadji Gueye, acusado de abuso sexual, acabaria por levar a melhor, uma vez apontada a “inconsistência da história” da mulher que o acusava. “Vivemos numa era em que condenamos pessoas baseados em alegações. Se for a uma esquadra da polícia dizer: ‘O John Doe violou-me’, não me perguntam mais nada”, resume Rotunno, a mulher que não falha uma marcação no cabeleireiro e que na primeira aparição pública ao lado de Weinstein elegeu uma criação de Maria Pinto, designer de Chicago que caiu nas graças de Michelle Obama e Oprah Winfrey, e um vistoso colar Ferragamo que a fazia sobressair entre a legião de fatos escuros, detalhou o Le Figaro.
Sem filhos, amante do ciclismo e madrinha de 14 afilhados, Donna, que tem até direito a documentário na popular plataforma de streaming Netflix, terá pela frente a luta na barra do tribunal e de igual forma à frente das câmaras. Do outro lado da barricada estará a mediática Gloria Allred, responsável pela defesa das vítimas, e anteriormente ao lado de mulheres que acusaram OJ Simpson, Bill Cosby e Tiger Woods. Quando o diário francês lhe perguntou em que momento decide uma mulher dedicar-se a este tipo de causas, Rotunno não hesitou: “No momento em que começa a vencê-las”.