Basta uma visita de ocasião a uma feira de velharias ou a visita a uma biblioteca particular abandonada para ter uma ideia do alcance que teve Bertrand Russell. Os seus livros multiplicaram-se em edições populares, as suas ideias filosóficas entraram pelas casas mais chãs e a sua figura dominou a perceção pública do trabalho académico durante boa parte do século XX.
Morto há cinquenta anos, Bertrand Russell foi, ao mesmo tempo, uma espécie de relíquia e farol do Reino Unido do seu tempo; foi um Whig convicto depois da geração do Socialismo Fabiano, um pacifista antes de o pacifismo comover corações adolescentes pelo mundo inteiro, um Bedford com sotaque aristocrata e coração proletário, uma vedeta do Trinity College e um intelectual popular.
Se o século XX viveu atormentado com a ideia do regresso da religião ao coração dos homens, se aceitou o materialismo como o Deus do seu tempo e o dogma como o grande demónio, Russell tem com certeza uma boa dose de responsabilidade. Num tempo de Guerra Fria, Bertrand Russell foi várias vezes o idiota útil de ambos os lados. O materialismo derivado da matemática foi um bom suporte para a doutrina marxista, embora sem nunca chegar à ortodoxia soviética. Serviu, como porta estandarte do ateísmo militante e do progressismo mais ingénuo, mas a sua formação matemática nunca o incluiu nos grupos pós-modernos empenhados na desconstrução de todo o saber humano.
Russell foi, em certa medida, tudo aquilo que se costuma dizer da filosofia inglesa. Não foi o mais profundo dos filósofos, desenvolveu uma certa impermeabilidade às ideias de consequências mais radicais (mesmo que desprezasse o senso comum e que não refutasse exatamente aquilo que rejeitava) e foi o responsável pelo surgimento de um estilo que é, ainda hoje, distintivo de muitos pensadores ingleses. Russell dizia que, como tinha escrito os Principia Mathematica, um livro que pouca gente era capaz de perceber, podia dar-se ao luxo de ser claro noutras matérias. Esta clareza, mesmo que demasiadas vezes simplificasse os problemas de uma forma injusta, deu-lhe muitos leitores; à clareza, porém, juntou-se um estilo confessional que contaminou quase toda a filosofia inglesa. Fora do academismo mais puro, é o estilo de Bertrand Russell que prevalece no trabalho filosófico. É em livros como O Meu desenvolvimento filosófico ou Porque não sou Cristão que os seus pontos de vista são mais facilmente compreendidos, não só nas suas ramificações lógicas, mas até na sua importância. Russell começa sempre por explicar porque é que um problema lhe interessa, ou como é que chegou a certa conclusão, e isso torna a sua filosofia aparente mais prática e útil. Sem ser exatamente um filósofo pragmático, Russell tem o dom de mostrar de que modo é que os problemas que lhe interessam são importantes para o Homem comum,
Em O Meu Desenvolvimento filosófico, Russell explica que duas coisas o levaram à filosofia. A questão de Deus, em primeiro lugar, e o interesse por saber o que é que podíamos de facto conhecer. Russell vinha da matemática, onde se interessara sobretudo pela propriedade da comunicação. Isto é, de que forma duas coisas diferentes se podiam juntar. No entanto, os sistemas filosóficos que trataram o assunto – do Ti KATA TINOS Aristotélico à ideia de subordinação e ao conceito sintético a priori kantianos – não lhe pareciam satisfatórios. Isto porque Russell não queria apostar as suas fichas na metafísica, para que não olhava como matéria de conhecimento certo. Isto é, a Russell a ideia de que o nosso olhar desempenha um papel fundamental na relação com as coisas desviava o problema para um ponto que não lhe interessava. Nem ele estava interessado em estudar as estruturas do pensamento mas sim as coisas que provocavam o que de diferente aparecia no nosso ponto de vista – as coisas em si – nem lhe parecia que o problema da nossa relação com o mundo tivesse tanta importância no próprio mundo.
Russell não refuta exatamente os pontos de vista metafísicos. Parte apenas do princípio de que aquilo que vemos e que não se consegue provar que não tem existência como a vemos é verdadeiro. Assim, todas as coisas têm uma propriedade independente, que lhe dá a sua diferença, e é isso que Russell pretende estudar.
Aquilo que está na base da matemática – a redução da coisa a um atributo – estará também na base da filosofia de Russell. É possível que aquilo que vemos tenha um atributo reconhecível, e é isso que podemos conhecer. Não é possível dizer qual a forma verdadeira das coisas, ou qual a sua essência, mas é possível dizer que há várias coisas e que, portanto, há uma relação entre elas.
Russell chega, assim, à ideia, própria de uma certa filosofia analítica, de que é possível conhecer alguma coisa que não está minada pelas categorias do pensamento, de que é possível encontrar pelo menos um núcleo independente possível capaz de relação, como na matemática ou na lógica.
Esta ideia é, então, aproveitada por Russell para chegar à sua primeira interrogação filosófica. A ideia de que não é preciso metafísica para ter algum conhecimento transforma-se num pretexto para usar a Navalha de Ockham. Se a metafísica não é necessária, então é falsa. Todo o desenvolvimento metafísico, como veremos na sua História da Filosofia, é arbitrário e dogmático, e o verdadeiro desenvolvimento do pensamento passa pela libertação progressiva de todo o pensamento metafísico, da teologia ao pensamento hegeliano. Para Bertrand Russell este pensamento metafísico está, aliás, na origem de um desconforto existencial, porque uma mente apostada em acreditar na metafísica está sempre num esforço de encaixar num sistema limitado um mundo ilimitado.
Deus, a manifestação suprema da unidade, é o exemplo mais óbvio daquilo que, para Russell, é o pensamento primário. Não é por acaso que o seu Porque Não Sou Cristão?, um livro com a sua intervenção inicial num debate sobre a fé, trata todo o problema teológico com uma sobranceria e um certo descuido que não estamos habituados a ver em filósofos. Para Russell, a filosofia só é capaz de tratar da diferença, pelo que qualquer proclamação de unidade é apenas reflexo de um misticismo enganador e o resquício de um pensamento primário que tenderá a desaparecer à medida que o mundo se for provando mais desadequado às narrativas unitárias.
Curiosamente, Russell nunca discute, nem na sua História da Filosofia, nem nos seus Ensaios Cépticos, as grandes ideias metafísicas. A ideia de substância e acidente, ou de forma entendida à maneira de Platão, a antropologia transcendental, nada disso é discutido no seu próprio terreno. O método de refutação de Russell passa sempre pela mudança de ponto de partida, mesmo que esse ponto de partida tenha sido contestado por aqueles que critica. Nos seus Ensaios Cépticos, por exemplo, este método é revelador. Russell começa por defender as vantagens do ceticismo. No entanto, recusa o pirronismo radical porque ele não traz “vantagens”. Ora, do ponto de vista filosófico, recusar premissas ou ideias porque não nos interessam as consequências é difícil de fazer.
Russell valeu-se do conhecimento matemático e das analogias com a ciência para ganhar um certo capital intelectual que um mundo vindo do positivismo se habituara a respeitar; no entanto, do ponto de vista filosófico, é difícil dar hoje ao seu legado a importância que teve no seu tempo. Continuará sempre a ser um escritor interessante, um matemático com certa importância, um académico responsável por parte do prestígio de Wittgenstein e uma figura de importância histórica, com algumas intuições maravilhosas. No entanto, e fora algumas ideias marginais, naquilo que mais lhe interessou e que motivou a sua pesquisa substancial, é difícil dizer que Russell foi ao fundo das questões.