Assunção Cristas juntou-se ao coro de vozes que se têm levantado contra a eutanásia. Num post publicado na sua página de Facebook a ex-líder do CDS rompeu o silêncio a que se tinha remetido desde a despedida do Parlamento para apelar a que se leve este assunto a referendo.
“Deixem ao menos que as pessoas percebam o que está em causa e se pronunciem, sem pressa e sem pressões”, escreve já no fim da mensagem de oito parágrafos onde se mantém fiel à posição que sempre defendeu.
A forma como tratamos as pessoas mais vulneráveis e dependentes, sejam crianças, idosos ou doentes, define-nos como sociedade. Nesta matéria da eutanásia não podemos chegar a uma tomada de posição esclarecida e fundada se antes não nos colocarmos uma questão prévia: queremos ser uma solidária e compassiva, uma sociedade que cuida sempre dos que mais precisam ou preferimos que cada um se feche na sua esfera de “liberdade” para fazer uma “escolha” definitiva quanto ao momento em quer ser morto por outro? Queremos promover a vida ou impulsionar a morte?”
Cristas também aproveitou para revelar “uma enorme perplexidade”, causada não só pela “repentina reintrodução do tema da eutanásia no nosso país”, num momento em que diz haver “absoluta unanimidade política” na “necessidade de reforçar e apoiar a prestação de cuidados a todas as pessoas”, como também pela “pressa, perante a profunda divisão, numa tomada de posição definitiva.”
“Não conseguimos executar aquilo em que estamos de acordo – a universalização do acesso aos cuidados paliativos ou a execução prática de um efetivo estatuto do cuidador informal -“, escreve, “e quer o Parlamento, com rapidez, legislar sobre um tema que nem mereceu uma linha nos programas eleitorais dos partidos mais votados: Partido Socialista e Partido Social Democrata?”
Depois de uma primeira tentativa em 2018, onde nenhum projeto de lei foi aprovado, o Parlamento da era “geringonça” faz, na próxima quinta-feira, dia 20 de fevereiro, nova tentativa de aprovar a despenalização da morte medicamente assistida. Há cinco propostas em cima da mesa — do PS, BE, PAN, Verdes e Iniciativa Liberal –, com diferenças entre si, e há uma maioria parlamentar a favor do “sim” à despenalização da eutanásia.
Leia em baixo, na integra, o post de Assunção Cristas:
“Cuidem de mim, não me matem.
Há uma enorme perplexidade que me assome na repentina reintrodução do tema da eutanásia no nosso país: por um lado, a lentidão, perante a absoluta unanimidade política que existe na necessidade de reforçar e apoiar a prestação de cuidados a todas as pessoas, por outro lado, a pressa, perante a profunda divisão, numa tomada de posição definitiva.
Não conseguimos executar aquilo em que estamos de acordo – a universalização do acesso aos cuidados paliativos ou a execução prática de um efetivo estatuto do cuidador informal – e quer o Parlamento, com rapidez, legislar sobre um tema que nem mereceu uma linha nos programas eleitorais dos partidos mais votados: Partido Socialista e Partido Social Democrata?
Desculpem, mas não compreendo a urgência. Nem compreendo que quem não se quis comprometer num programa eleitoral sufragado em outubro queira agora vedar a possibilidade de ouvir todos os portugueses sobre um tema tão estruturante da nossa vida coletiva.
A forma como tratamos as pessoas mais vulneráveis e dependentes, sejam crianças, idosos ou doentes, define-nos como sociedade. Nesta matéria da eutanásia não podemos chegar a uma tomada de posição esclarecida e fundada se antes não nos colocarmos uma questão prévia: queremos ser uma solidária e compassiva, uma sociedade que cuida sempre dos que mais precisam ou preferimos que cada um se feche na sua esfera de “liberdade” para fazer uma “escolha” definitiva quanto ao momento em quer ser morto por outro? Queremos promover a vida ou impulsionar a morte?
Não há gradações na proteção da vida e a vida de cada um não interessa apenas a si próprio, mas interessa a toda a sociedade. As pessoas não são ilhas isoladas numa sociedade. Por isso a protegemos a vida a vários níveis. Por isso a nossa Constituição determina que a vida humana é inviolável. Por isso andamos década após década a fazer um caminho de proteção dos direitos humanos que longe de estar terminado é preciso reafirmar sempre. Neste catálogo dos direitos humanos existe o direito a viver, não existe o direito a morrer. É do direito a viver com dignidade até à morte natural que temos de tratar enquanto sociedade. Tal como não faz sentido prolongar artificialmente a vida – e felizmente temos a possibilidade de dizer exatamente o que não queremos que nos façam, como sermos ligados a uma máquina – também não faz sentido antecipar a morte.
Sob a capa do respeito pela liberdade do outro, o que se propõe é profundamente desumano, porque limita-se a proteção da vida pela sociedade em geral a um certo tipo de vida, deixando de lado a que, em virtude da doença, é mais frágil e menos capaz. Porque, mesmo sem querer ou admitir, estaremos, a prazo, a colocar uma pressão enorme sobre aqueles que estão na situação mais vulnerável para qualquer ser humano: a proximidade da morte. Uma pressão que facilmente levará à imposição moral de pedir a morte. Não é ficção científica, é a realidade que observamos na Bélgica e na Holanda, onde hoje se discute a possibilidade, por enquanto, a partir de certa idade, de ter sempre na algibeira um comprimido letal para quem o quiser.
Quando acharmos que a vida de cada um só a ele diz respeito teremos passado uma fronteira decisiva. Nada de novo. Basta olhar para a história da humanidade. Se for esse o caso, acredito que um dia, talvez daqui a muitos séculos, alguém vai olhar com distanciamento histórico para a barbárie agora iniciada e será então possível retomar o caminho do cuidado inquestionável ao outro.
No entretanto, deixem ao menos que as pessoas percebam o que está em causa e se pronunciem, sem pressa e sem pressões. Da minha parte, gostava que a sociedade me desse meios para viver até ao fim, sem dor insuportável e acompanhada, não gostava que me oferecesse a morte antecipada como remédio eficiente. Quando esse momento chegar, cuidem de mim, não me matem.”