Quando embarcou no avião que trouxe para a Europa os vinte cidadãos portugueses e brasileiros repatriados por causa do coronavírus, Miguel Matos só conhecia três dos portugueses a bordo: os colegas com quem trabalha na equipa técnica do clube chinês de futebol, Hubei Chufeng Heli. Quando regressar à China, contudo, leva um grupo de amigos bem maior. Depois de 14 dias em isolamento voluntário numa ala do hospital Pulido Valente, em Lisboa, o treinador de futebol natural de Caldas das Taipas, em Braga, não tem dúvidas: “Fiquei com alguns amigos“.

Miguel Matos está saudável. Os testes realizados no início e no final da quarentena voluntária aos vinte cidadãos (18 portugueses e dois brasileiros) que estiveram isolados do mundo durante duas semanas deram negativo — e a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, já garantiu que todos regressaram neste sábado às suas vidas normais, sem qualquer restrição adicional. Ao Observador, já a caminho de Braga, para se reunir finalmente com a sua família — com quem apenas pôde comunicar por vídeo-chamada nos últimos dias —, Miguel Matos descreveu os 14 dias de quarentena.

Portugueses repatriados da China saem de quarentena e deixam hospital

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Isolados numa ala do hospital Pulido Valente que foi fechada para o grupo, o grupo teve tempo para se conhecer. A cada um foi atribuído um quarto individual ou duplo ao longo de um corredor. Ao centro, uma sala de estar onde passaram grande parte do tempo — e onde tinham, obrigatoriamente, de usar máscara. Apesar de não estarem doentes, foram acompanhados diariamente por médicos, enfermeiros e psicólogos. “Durante os 14 dias, não podíamos receber visitas. A única forma de comunicarmos era falar com a família via telefone e vídeo-chamadas“, lembra Miguel Matos.

“Passávamos o tempo a conviver uns com os outros, a partilhar as nossas vivências e experiências de vida, quer em Portugal quer na China”, lembra Miguel.

Além dos treinadores de futebol que trabalham na equipa de Wuhan, a cidade no centro da China que foi o epicentro do coronavírus, o grupo incluía professores, estudantes de doutoramento que desenvolviam investigações na China e profissionais de vários setores. “Essa foi a parte interessante. Eu conhecia os meus colegas. Os outros, só conhecemos quando nos encontrámos no lóbi do hotel onde combinámos encontrar-nos, em Wuhan. Se Deus quiser alguns voltarão para a China daqui a um mês ou um pouco mais. Fiquei com alguns amigos. Certamente, vamo-nos encontrar novamente.”

Miguel Matos, treinador, foi um dos portugueses de quarentena

No segundo dia do isolamento profilático voluntário, o grupo foi abordado pelos profissionais do hospital, que lhes pediram “sugestões em relação ao que se podia melhorar” nas instalações. Pediram acesso a equipamentos de ginásio e a um espaço exterior. Tudo o que pediram foi concedido. “Vedaram um espaço onde podíamos apanhar algum ar fresco“, explica o treinador de futebol. “É que passar 14 dias sempre dentro de um edifício…”

Na sala comum, havia televisão, jornais, acesso à internet e livros. Foi através das notícias que acompanharam a evolução da epidemia — e da sua própria situação. Durante os dias do isolamento, que não foi um internamento, Miguel Matos tentou levar um quotidiano o mais normal possível. “Acordava, tomava o pequeno-almoço, lia os jornais e fazia exercício físico.” Depois, ficava pela sala comum a conversar. Foi assim que conheceu as histórias de “infelicidade” dos dois trabalhadores portugueses na Suíça que estiveram em Wuhan para “um trabalho temporário” ou das duas brasileiras que estavam de passagem.

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Mas alguns são mesmo residentes e vamos voltar“, afirma Miguel Matos. Neste momento, o clube de futebol onde trabalha está com a sua atividade completamente parada. “Em Wuhan está tudo parado, ninguém treina. Estamos sempre em contacto com a China e logo que haja condições de segurança para que possamos voltar, regressamos”, explica o treinador, detalhando que “a situação neste momento está muito pior” do que quando o grupo de portugueses saiu. “Agora ninguém pode sair de casa. Só um elemento da família, de três em três dias, devidamente autorizado. A comida, é o governo que entrega nas casas.”

Finalmente livre da quarentena voluntária — ou da “missão“, como descreve as duas semanas que passou no hospital —, Miguel Matos rumou a Braga para se encontrar com a família. “Vou aproveitar para disfrutar com a minha filha, a minha mulher, a minha mãe, os meus irmãos e os meus amigos estes próximos dias, já que tão cedo não voltarei à China, porque ainda não há condições de segurança para nós retomarmos o nosso trabalho. E depois, pronto, e depois aguardar, como disse há pouco, que a China volte à normalidade. A China está a lutar contra um problema grave, mas eu acredito que dentro de um mês, um mês e meio, possamos voltar aos nossos trabalhos.”

Antes de abandonar o hospital, o grupo ainda tirou uma fotografia com a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, e com a própria ministra da tutela, Marta Temido.

O surto de coronavírus que surgiu na cidade chinesa de Wuhan já matou 1.523 pessoas. Neste sábado, foi registada a primeira morte na Europa — um turista chinês idoso que morreu em França. A Organização Mundial de Saúde continua a investigar as características biológicas do vírus com o objetivo de criar tratamentos eficazes e de desenvolver uma vacina que previna a infeção.