O grupo editorial Hachette, pressionado por protestos dos funcionários, anunciou na sexta-feira que afinal não irá publicar a autobiografia do realizador norte-americano Woody Allen, acusado de abuso sexual, prevista para sair no início de abril, nos Estados Unidos.
A juntar aos protestos dos funcionários da editora, que fizeram greve em Nova Iorque e Boston, como forma de se insurgirem contra os planos de publicação do livro “Apropos of Nothing” (“A Propósito de nada”, em tradução livre), conta-se também a reação do filho do cineasta, o jornalista Ronan Farrow, que se opôs à publicação das memórias do pai pelo mesmo grupo editorial que publicou em 2019 o seu livro “Catch and Kill”, sobre uma investigação a casos de abusos sexuais, em que se inclui o caso de Harvey Weinstein, e à forma como os poderosos escapam à justiça.
Antes ainda da publicação deste livro, que se tornou um “best-seller” e um dos livros símbolo do movimento #MeToo, Ronan Farrow, único filho biológico de Woody Allen e Mia Farrow, sempre se manteve do lado da mãe e da irmã Dylan Farrow nas acusações a Woody Allen de abuso sexual.
Em 2014, Dylan Farrow, filha adotiva do casal, acusou Woody Allen de ter abusado sexualmente dela em 1992, quando tinha apenas sete anos, uma acusação que reiterou em 2018, mas que Woody Allen sempre desmentiu e que nunca foi comprovada pelas investigações que se fizeram ao caso. No entanto, este posicionamento de Dylan Farrow, que sempre teve o apoio do irmão Ronan, obteve também o respaldo de parte da indústria cinematográfica, e Ronan Farrow ameaçou mesmo cortar os laços com a editora.
Numa declaração conjunta, os funcionários da Hachette afirmaram: “Somos solidários com Ronan Farrow, Dylan Farrow e os sobreviventes de casos de agressão sexual”, escreve o jornal The Guardian.
Em reconhecimento, Dylan Farrow escreveu no Twitter estar “inacreditavelmente impressionada e incrivelmente grata pela solidariedade demonstrada pelos funcionários” do grupo editorial, e acrescentou que a decisão de Hachette de publicar o livro de Allen tinha sido “profundamente perturbadora” para si e “uma completa traição” ao irmão.
A fúria pela planeada publicação do livro de Woody Allen aumentou depois de o diretor-executivo da Hachette, Michael Pietsch, ter afirmando, numa entrevista ao New York Times, que “cada livro tem a sua própria missão”. “O nosso trabalho como editores é ajudar o autor a alcançar o que se propôs a fazer na criação do seu livro”.
Num e-mail enviado a Pietsch por Ronan Farrow, este afirma que a política de independência editorial da Hachette “não o isenta das suas obrigações morais e profissionais como editor de “Catch and Kill” e como líder de uma empresa chamada a ajudar nos esforços de homens abusivos que querem branquear os seus crimes”.
Enquanto trabalhávamos em ‘Catch and Kill’”, que abordava “os danos que Woody Allen causou à minha família (…) você planeava secretamente publicar um livro da pessoa que cometeu esses mesmos atos de abuso sexual”.
Contudo, a decisão do grupo editorial de voltar atrás na decisão de publicar a autobiografia do realizador de “Annie Hall” acabou por se revelar também controversa, com algumas vozes a levantarem-se contra esta cedência a pressões e a falarem de censura.
Num artigo publicado no jornal The Guardian, a ex-diretora do PEN club inglês e ex-editora do Index on Censorship, uma organização sem fins lucrativos cujo objetivo é promover a liberdade de expressão, Jo Glanville, deixou claro que “este é o comportamento de censores, não de editores”, e acusa a Hachette de ter sucumbido à ofensa moral, ao rejeitar publicar o livro.
Isto é preocupante para escritores e leitores. Os funcionários da Hachette, que protestaram na semana passada, claramente pensavam que estavam a fazer o que era moralmente correto – protestar contra a publicação de um livro escrito por um homem que foi acusado de abusar da sua própria filha. Mas, como já foi repetido várias vezes, Woody Allen foi investigado por duas vezes e nunca foi acusado. Apesar de Dylan e Ronan acusarem Woody Allen, ele não foi considerado culpado. Nada foi provado. De facto, não há uma razão aceitável para não publicar o livro de Woody Allen”, escreveu.
Jo Glanville sublinhou ainda que desde criança que vê os filmes de Woody Allen e gostaria de ler o livro: “Gostaria de ler o seu livro, mesmo que fosse considerado culpado, porque estou interessada no homem, no seu trabalho e na sua vida. Não faço verificações da pureza moral e do registo criminal de um escritor antes de o ler. Teria de retirar das minhas estantes de livros muitos dos escritores que mais amo, se fosse começar a aplicar os princípios da equipa da Hachette: T.S. Eliot e Roald Dahl, para começar, como antissemitas. De facto, a maior parte do cânone inglês teria de ser rejeitado, nessa base”, acrescentou.
Também o escritor Stephen King já veio criticar a Hachette e manifestar “desconforto” com a decisão da editora norte-americana de cancelar a publicação do livro. “A decisão da Hachette de abandonar o livro de Woody Allen deixa-me muito desconfortável”, escreveu Stephen King, no Twitter, acrescentando: “Não é ele. Estou-me nas tintas para o Sr. Allen. É quem será amordaçado da próxima vez que me preocupa”.