As notícias começaram a meio da semana e seguiram em catadupa: concertos, festivais, estreias no teatro e no cinema, temporadas, lançamentos, debates, museus, escolas, escritórios, discotecas, bares, praias, centros comerciais, recintos desportivos. Quase tudo cancelado ou adiado para altura melhor, condicionado, restringido, encerrado, suspenso. Desde sexta-feira, Portugal está fechado, ou perto disso, como boa parte da Europa, numa luta incerta, imprevista, contra um adversário que tem do lado dele a desleal vantagem da invisibilidade. Nunca vemos quando se aproxima nem de onde. Pode vir pelas costas, mesmo quando nos persuade de que nem sequer está aqui. Sobretudo quando nos persuade de que nem sequer está aqui.
Nestes dias do novo coronavírus, voltámos para casa, e dentro de casa, para a televisão, e dentro das redes sociais, para o Facebook, talvez mais do que para o Instagram ou outra, porque precisamos de falar uns com os outros e as latas de atum e o papel higiénico que aparentemente se esgotou não têm o sex appeal mínimo exigido no “Insta”. E entre aquela urgência coletiva de opinar e o cinismo permanente de quem de tudo duvida e tudo aponta (que as medidas pecam por escassez, que pecam por exagero, que anda tudo a dormir, que anda tudo a alarmar, que “eles” não nos dizem a verdade porque eu tenho um primo que tem um amigo que fala com uma senhora que tinha um vizinho que disse que), vai passando também uma corrente de comovente humanidade. O concerto para ver em casa, de Salvador Sobral, foi um tocante exemplo disso mesmo.
Sobral, que tinha esta noite espectáculo marcado para o Barreiro e que, como todos os outros artistas, se viu forçado a adiá-lo sine die, anunciou quinta-feira à noite esta sessão para sábado 14: a “Quinta das Canções Live”, o despretensioso projeto em que reinterpreta com o guitarrista André Santos canções portuguesas de outros. O comunicado, feito em vídeo num quintal, com a erva a entrar no plano e, atrás, ainda o recorte de uma escada que ali esteve em tempos, dizia o fundamental: vamos lá dar descanso à maquilhagem e aos filtros. Há uma subtil ternura nesta versão doméstica do mundo.
[a primeira parte do concerto:]
À hora marcada, 21h30 de Lisboa, o vídeo do direto abre-se no Facebook de Sobral: uma sala ainda vazia, uma guitarra e um guitalele, papéis com as letras pelo chão, algumas velas e vasos, os sussurros atrás da câmara, 3,9 mil pessoas a assistir via “www”. Às 21h32, entram os artistas, sem o bruá da plateia que não está (rima involuntária, mas que deixamos ficar por ter qualquer coisa de musical). No fim d’ “O Primeiro Gomo da Tangerina” (Sérgio Godinho), brincam com a falta de palmas – que se sente, mas só desta primeira vez. Quando seguem para “Só” (Jorge Palma), damos já inexplicavelmente por nós a cantar cá como se estivéssemos lá.
O número de computadores ou smartphones ligados em direto vai subindo no canto do ecrã: 13,8 mil, 14 mil, 15 mil – ainda durante a canção. Quando Sobral termina e sugere dizer boa noite às pessoas – “Se calhar, não está ninguém…” – são já 15 700. Em “O Navio Dela” (Manel Cruz), explora pela primeira vez um pouco o meio, levantando-se e avançando até tão próximo da câmara que a objetiva lhe deforme o rosto. A seguir, “Senta-te Aí” (Rio Grande, letra de João Monge e música de João Gil) é um dos momentos mais bonitos, com uma interpretação comovente, sempre em falsete. Que nos tenhamos dado conta, é também o momento mais povoado da noite: 19,9 mil pessoas, a muito mais do que um metro e poucos cliques de distância.
Um ligeiro engano resolvido com um sorriso em “No Fundo dos Teus Olhos de Água” (de Lena… d’Água), que cola direta com “Tu e Eu”, a versão do Conjunto Académico João Paulo do “So Happy Together”, dos Turtles. “Andreia”, que vai controlando a câmara e o Facebook, lê alguns comentários e alerta os músicos para o momento que se segue: às 22 em ponto, bate-se palmas pelos profissionais de saúde de todo o país. Sobral faz o elogio ao seu jeito, nada grandiloquente, mas sincero, em particular aos enfermeiros: “eu sempre quis aplaudi-los”. Para concluírem depois a primeira parte com “Maria Lisboa” (Amália Rodrigues), outra escolha de um repertório nada óbvio (e ainda bem). Quando o direto é interrompido, os grafismos assinalam: 18 mil likes, 10 mil comentários, 3 mil partilhas, 249 mil visualizações.
A segunda parte terá menos gente. Começará nas 10 mil e terminará um pouco abaixo das 12 (em casa como na rua, as pessoas vão ver o que brilha e afastam-se quando já não é novo. Mais ou menos como os gatos). Em novo enquadramento, junto a um piano prometido e revelando uma parte da sala muito mais crua, em ruína ou construção, Salvador Sobral recomeça com um tema numa língua que não nos atrevemos a adivinhar e segue para “Ela Disse-me Assim” (Lupicínio Rodrigues). Brinca mais uma vez com o contexto que, a esta altura, já nada tem de estranho e faz a voz de um pretenso espectador que pede “mais uma ao piano”: “Estrada Dividida”, da irmã Luísa.
Já com André Santos e de regresso ao cenário inicial, passamos a “Travessia do Deserto” (José Mário Branco), “Sem Emenda” (Joana Espadinha) e “Lado Esquerdo”, “a minha canção preferida dos Clã”, diz Sobral, noutro dos momentos bonitos-mesmo-bonitos do serão, uma interpretação que dramatiza ainda mais a canção já bem cheia de contornos na voz de Manuela Azevedo, a quem Sobral manda, agora, “um beijo assético”.
[a segunda parte do concerto:]
Viajando assim por épocas completamente distintas da música portuguesa, com a capacidade de as infiltrarem a todas de um tempo comum, André e Salvador prosseguem com outra canção de Luísa Sobral – “O Verdadeiro Amor” – e a que era para ser a última, a “polémica”: “Todos os Homens são Maricas Quando estão com Gripe” (Vitorino). Com o cuidado que os pudicos tempos exigem, Sobral esclarece que não vivemos uma gripe, mas algo muito mais sério, atirando-se depois a uma interpretação tão boa quanto terapêutica (no sentido de nos deixar com um sorriso na cara, entre o retrato perfeito da masculinidade-enquanto-enferma captado pela letra e o cantor agora estendido no chão da sala ao último verso: “Ai, Lurdes, que vou falecer” (“Que estranho não ter a energia do público para fazer estas parvoíces.”)
Mas, afinal, os concertos caseiros também têm direito a encores. “Anda Estragar-me os Planos”, do próprio Sobral, convidando-nos a dançar em casa; “Casei com uma Velha”, de Max, de que André Santos é conterrâneo; “Isso e Aquilo”, de Nana Caymmi; e um pouco de “Amar pelos Dois”, ao piano, vocês-sabem-de-quem. Já depois de sugerirem que este tipo de iniciativas se possa repetir, encontrando alguma forma de as pessoas fazerem um donativo, não hoje, mas de futuro, já que os artistas serão das classes profissionais que mais sentirão as consequências económicas da crise do Covid-19, a Quinta acaba com “Verdes São os Campos”, de José Afonso e poema de Camões.
São 23 horas e Salvador renova os apelos importantes: fiquem em casa, não corram para as urgências, liguem para o SNS 24, vamos todos tentar que isto tenha o menor impacto possível. André Santos lava as mãos com desinfetante. O direto termina e volta o silêncio da cidade. O silêncio acompanhado em que, momentaneamente, esperançosamente, habitamos. (Aqui na rua, uma hora antes, também parámos para ir à janela bater palmas. Éramos poucos, mas ouvíamo-nos. Não nos conseguíamos ver uns aos outros, não fazíamos ideia de quem éramos, mas éramos todos tão obviamente iguais.)