Há mais de quatro anos que Maria de Fátima, empregada doméstica, é a principal cuidadora de uma idosa de 78 anos com uma doença degenerativa. Um trabalho diário, cinco dias por semana, que começa às 9h e tantas vezes se estende para lá das 18h, conforme o estado de saúde da sua empregadora. Por isso é que se desabituou a usar relógio. Nem sempre os cuidados que presta têm horas certas. Mas com o aumento exponencial da Covid-19, e o país em estado de alerta, o próprio trabalho que faz ficou em risco.
E assim se deve manter nas próximas semanas, pelo menos enquanto as escolas estiverem encerradas e tiver de ficar em casa com os filhos. Mais incerto ainda é o seu salário. Isto porque Maria de Fátima, tal como 90% das empregadas domésticas em Portugal, tem contrato de trabalho e contribui para a segurança social com base no valor de 438,81€ (o Indexante dos Apoios Sociais) como confirmaram ao Observador várias empresas de recrutamento de trabalhadoras domésticas. O que significa que o empregador paga 18,9% dos 438,81€ declarados (ou seja, 82,94€) e a trabalhadora assume 9,4% do mesmo valor (41,25€). Se os descontos fossem feitos sobre o valor real do salário (mínimo de 635€) as contribuições para a segurança social “disparavam”, resume Fernanda Oliveira, responsável pela empresa QuerMarias, (temporariamente encerrada), e especializada na seleção de funcionários domésticos. O que podia levar muitas famílias a prescindirem destes serviços.
E se é verdade que as contribuições aumentavam, também é verdade que numa situação excecional, como é a pandemia epidemiológica da Covid-19, e que obrigou ao encerramento dos estabelecimentos de ensino, quem ganha a vida como empregada doméstica ficou prejudicada. Na sequência das decisões do Conselho de Ministros, os trabalhadores que tenham de ficar em casa com os filhos vão receber 66% do salário. O que significa 322,28€ para Maria de Fátima. E uma dor de cabeça. “É muito pouco. Mal chega para a renda. Não sei como vou aguentar”, conta. E são muitas as prestadoras de serviços que fazem destas palavras suas, segundo apurou o Observador. Para as ajudar, os empregadores estão a antecipar semanas de férias (pagas) e que não serão gozadas no mês de Verão. Outros, “para não perderem a empregada com quem criaram laços efetivos” ou porque não gostam de rotatividade, estão a optar por bancos de horas, reconhece Fernanda Oliveira. Medidas para não prejudicar quem tem como principal atividade cuidar dos outros. “Só com bom senso é que vai ser possível ajudar estas trabalhadoras que vão levar um corte no vencimento”, conclui. Mas a situação vai ser insustentável com o passar das semanas.
Para a jurista da Deco, Sonia Covita, quem não declarou o real valor do salário que mensalmente levava para casa e optou pelo convencionado (438,81€), ou nos piores dos casos, nunca declarou os rendimentos, “agora só pode contar com a boa vontade dos empregadores“. E ainda são muitas as situações de empregadas domésticas sem contratos, reconhece a jurista. Um risco que, agora, pagam caro. “Recebem zero da segurança social. São trabalhadoras completamente desprotegidas“.
Na casa onde Isabel trabalha a dias e cuida de um bebé de um ano, a rotina está prestes a mudar. Apesar dos cuidados de higienização que nas últimas semanas foram sendo implementados pelos pais do bebé, como a constante lavagem das mãos com água e sabão ou o recurso aos desinfetantes à base álcool – e que Isabel diz ter seguido à risca – é provável que o seu trabalho tenha chegado ao fim. Sem contrato, soube da notícia através de uma mensagem. “Dizia que quando a situação estivesse mais calma entravam em contacto comigo. Não sei se isso vai acontecer”, diz. Ou sequer quando. Porque o trabalho de um cuidador ou de uma empregada doméstica não é conciliável com as medidas de distanciamento social. E com o crescimento exponencial da pandemia, ninguém quer arriscar. E isso também explica uma quebra na procura de serviços como baby-sitters ou cuidadores de idosos, como reconhece Cláudia, da empresa Donas de Casa, com sede no Porto. “Está tudo parado. A adiar a entrada de empregadas. Neste momento, os familiares preferem cuidar dos mais vulneráveis. Sentem mais confiança”.
Também Sandra Covita, da DECO, confirma que já lhe têm chegado relatos de agências de limpezas que estão a reduzir os seus colaboradores porque os serviços de limpeza da casa ou de cuidados ao domicílio são agora “dispensáveis”. A questão é saber o que aconteceu até agora, do ponto de vista das contribuições à Segurança Social. “Se um trabalhador doméstico tiver a sua situação contributiva correta, não corre qualquer risco. Tem os mesmos direitos às prestações sociais que qualquer outro trabalhador por conta de outrem. Quando isso não acontece, e são muitos ainda os casos, não há quem os ajude”.