Há vários hospitais que não estão a responder ou a aceitar pessoas suspeitas de terem coronavírus para testes que a Linha de Atendimento Médico (LAM) está a procurar encaminhar, denunciou ao Observador um dos médicos desse serviço. Ontem à noite, por exemplo, havia clínicos que se queixavam no grupo de WhatsApp da LAM que não conseguiam colocar essas pessoas nos hospitais: ou porque estes não atendiam — caso do São João e do Santo António, no Porto — ou porque simplesmente não tinham vaga, caso do hospital da Guarda que remeteu o assunto para o de Viseu. Por vezes, um médico chega a gastar horas para conseguir uma unidade hospitalar para enviar os casos que lhes chegam através do SNS24 ou através da linha direta usada pelos colegas dos hospitais.

“O sistema está à beira do colapso”, disse o médico da LAM que falou ao Observador sob anonimato. “Esta fase começa a meter mais medo. Hoje [quarta-feira] já vai entrar em funcionamento a zona no ‘queimódromo’ do Porto, os chamados  testes ‘drive-thru’. E qual vai ser a resposta, após o teste, se a capacidade de atendimento do hospital se está a esgotar?”

O estado de emergência decretado na terça-feira em Ovar acentua os receios deste médico: “E se se replica noutro lugar? A incapacidade de resposta até aqui não nos permite otimismos para o futuro”.  Até porque, continua, as análises estão a demorar imenso tempo: na terça-feira, por exemplo, um dos médicos esperou mais de 12 horas que o hospital Santo António, no Porto, lhe remetesse os resultados dos testes de um caso.

O bom exemplo vem do Hospital Egas Moniz, em Lisboa que está a mandar o INEM a casa das pessoas com quadros ligeiros para fazer a colheita para análise: “É o que deveria estar a ser feito em todo o país, reforçando a linha de atendimento telefónico com médicos”, acrescenta este clínico.

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Hospital recusou doentes por falta de declaração escrita de outro hospital

O volume de chamadas tem sido uma das queixas sistemáticas dos médicos da LAM. Durante um minuto, o médico recebeu mais de cinco. Não atendeu nenhuma. O mesmo se tinha passado nos dez minutos anteriores: tinha falhado 13 ligações do SNS 24. Estava a tentar conseguir que um dos hospitais de referência para a pandemia do coronavírus em Portugal recebesse dois doentes que já tinham obtido um teste positivo desse mesmo hospital e por isso não podia responder às chamadas que caíam em catadupa. Só que desse hospital ninguém atendia.

O mesmo se tinha passado no fim-de-semana, em que durante cinco horas tentou encaminhar dois doentes para um dos hospitais direcionados para a Covid-19, já depois de devidamente validados por testes laboratoriais e aprovados por ele. Só que não havia vaga nesse hospital, havia num outro a cerca de uma hora de distância, mas que não recebeu os doentes porque era necessária uma declaração, por escrito, do primeiro hospital a dizer que não tinha lugar. “Numa fase de crise destas é uma burocracia inexplicável, ou então uma maneira de dizer não, dizendo sim”, lamenta ao Observador.

Os dois exemplos servem ao médico para mostrar como esta linha está a ser “manifestamente insuficiente para os pedidos que recebe”. Há médicos que não conseguem ser atendidos, houve já o relato de uma que tentou mais de 40 vezes em vão. “Enquanto atendo uma chamada, há 20 que ficam por atender. Numa hora posso receber mais de 80 chamadas”, refere.

“No tempo que estou a resolver a situação de uma pessoa, não posso atender”. Os médicos da LAM devem validar o caso podendo “certificar” essa validação com outro médico da Linha ou com um colega do hospital de referência.  Se for positivo, têm de ter a certeza que nesse hospital há vaga. Caso não consigam, têm de conseguir lugar noutra unidade hospitalar, contactar a gestão do INEM para o doente ser transportado de ambulância, contactar a autoridade regional de saúde e reportar à gestão LAM as suas decisões.

Por outro lado, “às vezes estamos a tentar falar para o hospital e não conseguimos porque as chamadas do SNS24 não param de chegar e bloqueiam o nosso telemóvel”, queixa-se este médico com largos anos de experiência.

Isto mesmo foi reconhecido pela diretora-geral de Saúde a 10 deste mês, dia em que foram atendidas 1055 chamadas tendo ficado 200 perdidas. Na altura, tanto Graça Freitas como a ministra Marta Temido asseguraram que quer o SNS24, que tem tido vários problemas, quer a LAM iriam ser reforçadas — o que viria a acontecer na segunda-feira, dia 16.

Já na terça-feira, dia 17, o secretário de Estado da Saúde garantiu que estava a “melhorar os tempos de resposta do centro de contacto SNS 24“ que “continua a ser o canal primordial de entrada de doentes com coronavírus ”: na segunda-feira atendeu “um número recorde de chamadas: 13 mil.”

Formação “muito incipiente” para médicos voluntários

O Ministério da Saúde também decidiu que “todos os doentes com suspeita de Covid-19 são submetidos à realização de testes laboratoriais, em qualquer Serviço de Urgência com capacidade para tal, por prescrição médica, sob validação do Chefe de Equipa, e sem recurso à LAM”. Mas, garante o médico que falou com o Observador, apesar de o volume de chamadas ter “diminuído um pouco” depois disso, o “encaminhamento dos casos está mais difícil”. Já esta quarta-feira a Visão avançou que esta linha vai ser extinta, citando uma circular enviada aos hospitais. Uma informação que ainda não chegou ao conhecimento dos médicos deste serviço. Aliás, ainda esta tarde, entre as 13h25 e as 13h56 foram adicionados mais 12 elementos à equipa da linha.

Na verdade, continua, a LAM deveria ser para dar apoio aos médicos das Unidades de Saúde que tinham dúvidas sobre casos de coronavírus, mas na prática, muitos enfermeiros que recebem pedidos de informação na linha SNS 24 encaminham os doentes para a Linha. Os médicos que se voluntariaram, como foi o caso do contactado pelo Observador, receberam formação, “muito incipiente”, no final de fevereiro com tabelas de países de risco, critérios epidemiológicos que podiam fazer suspeitar de um caso de transmissão ativa e o cenário clínico que o doente representava. “Se a pessoa tinha quadro respiratório indicado e vinha de um país de risco, era validado para ir fazer o teste do coronavírus. Isto funcionaria na perfeição se tivéssemos uns 20 a 30 casos por dia, mas eu no primeiro dia tive logo mais do que isso”.

A LAM recebe todo o tipo de dúvidas ou situações. Desde colegas com questões quanto à validação ou não do caso clínico que se lhes apresenta, até ao colega de “um serviço de urgências de um hospital que tinha uma pessoa há mais de 24 horas em isolamento porque não conseguia ligar para a LAM…”.  Estes médicos têm que validar o diagnóstico com a linha “porque a eles não lhes foi passada a informação necessária. E os enfermeiros do SNS 24 nem sabem muitas vezes que perguntas fazer, já que não receberam sequer um impresso igual ao deles, acrescenta. “A nós contacta-nos toda a gente. Os enfermeiros e os médicos”.

Numa primeira fase estes médicos preenchiam uns formulários em papel e iam notificando os casos por WhatsApp, o que pode levantar questões de segurança de dados; agora já têm uma ferramenta online que ainda assim tem algumas dificuldades.

O Observador tentou desde domingo obter uma resposta quer da Direção Geral de Saúde quer do Ministério da Saúde para estas questões, mas foi em vão.

“Pôr os médicos na primeira linha de combate é um erro”

O médico alerta ainda para o facto de os profissionais nas várias unidades de saúde não estarem devidamente protegidos. “Pôr os médicos na primeira linha de contacto é um erro, se eles adoecem quem é que vai tratar das pessoas?”

Sublinha que os centros de saúde não estão preparados para fazer face a esta situação. Há casos de “pessoas que chegam a tossir, com dificuldades respiratórias óbvias, com febre, que apresentam sintomas de casos suspeitos e que são sentadas em cadeiras de rodas sem que haja uma alma que lhes ponha uma máscara até serem vistas pelo médico”. E nem sempre é por falta de material. “Dizem que é por sigilo profissional, que as pessoas não têm de dizer nada ao secretariado. Ora, nestas circunstâncias, em que está em risco a saúde pública, até ao porteiro têm de dizer! Para se proteger a si e aos outros.”

Um outro problema está na falta de locais para separar os doentes nas unidades de saúde. Não só nos centros de saúde — há relatos de doentes isolados nos próprios gabinetes dos médicos — mas também em alguns hospitais. Sem falar  do equipamento básico inexistente para estas circunstâncias, como as máscaras. “A encomenda dos dois milhões de máscaras anunciadas no sábado pela ministra já cá deveria estar! E também eficazes equipamentos completos de proteção”.

Quer nos centros de saúde, quer nos hospitais, “há vários casos de médicos afastados de serviço, por serem suspeitos ou, alguns, casos positivos para o vírus. Tem que se modificar a estratégia de triagem e análise, o quanto antes.”

“Estamos de novo na Idade Média”

As medidas foram tardias, insurge-se o médico. “Teríamos muito menos casos se as entidades responsáveis tivessem tido a inteligência de ver antecipadamente o que iria acontecer, até porque já havia a experiência de outros países. Estamos de novo como na Idade Média durante este perigo, esta mortandade que já se verifica noutros países. Temos de pedir responsabilidades a quem tanto tardou a tomar decisões e medidas que deveriam ter sido tomadas mais cedo. Outros países agiram, protegendo-se, não esperaram por nada disso”.

O clínico conta como numa empresa de material da especialidade lhe disseram que “quando pretenderam comprar material de proteção a fornecedores alemães, estes informaram que tinham instruções governamentais precisas para não venderem ao estrangeiro, deveriam guardar para proteção da sua população”. Há doentes imunocomprometidos, oncológicos, “a usar máscaras adequadas a trabalhos de construção civil”, porque os hospitais onde fazem os tratamentos de quimioterapia não lhas fornecem.

Na terça-feira, o secretário de Estado da Saúde disse que “ao longo da semana iriam ser distribuídos dois milhões de máscaras e 150 mil equipamentos de proteção individual” para que os profissionais de saúde (e também os doentes) possam estar devidamente protegidos”.

“Se estas medidas tivessem sido tomadas há um mês, se se tivesse comprado material em quantidade e qualidade suficiente, se tivesse sido dada às pessoas informação realista, não alarmista, que agora está a ser finalmente fornecida, a população poder-se-ia ter adaptado aos poucos a mudar o seu comportamento e as equipas que estão no terreno teriam tido tempo para se prepararem para uma correta atuação”, critica.