Têm sido vários os relatos dramáticos a chegar de Itália, primeiro, e Espanha, mais recentemente, sobre o nível de saturação dos hospitais que obriga a uma triagem radical: a definição de quem é deixado a morrer para que outros consigam viver. Esta situação dantesca já foi descrita várias vezes, é um exemplo do ponto de rutura a que pode chegar um sistema de saúde.
Esta quarta-feira, o médico especialista em geriatria João Gorjão Clara falou com a Rádio Observador sobre o impacto que esta pandemia está a ter sobre a população mais idosa — o principal grupo de risco — e quando questionado sobre se temia que Portugal pudesse chegar a esse cenário em que os médicos têm de decidir quem vive ou quem morre, o profissional de saúde confessou ter esse receio e que o Núcleo de Estudos de Geriatria da Sociedade Portuguesa da Medicina Interna já está “a discutir internamente quais as normas” a usar “quando chegar essa altura.”
O mesmo médico explicou ainda que essas considerações estão a ser feitas com base num documento da Belgian Society of Intensive Care Medicine que prevê tudo isso. O que diz então esse estudo que pretende definir como se escolhe quem vive e quem morre?
Os “cuidados desproporcionais”
“Princípios éticos relativos à proporcionalidade dos cuidados intensivos durante a pandemia COVID-19 de 2020 na Bélgica: aconselhamento da Sociedade Belga de Medicina Intensiva”, é este o nome do documento que está a ser estudado como possível base para outros protocolos a serem feitos pela Europa e que já é destacado pela European Geriatric Medicine Society. Assinado por um total de 13 investigadores, este estudo pretende ser “um guia ético para a triagem de pacientes com Covid-19”, lê-se na apresentação do mesmo, e apela a que cada hospital elabore o seu próprio guia para “evitar que o pessoal médico tenha de tomar decisões difíceis sem orientação ética, levando a que se tomem decisões arbitrárias”.
Na introdução do artigo lê-se que numa Unidade de Cuidados Intensivos (UCI), “terapias invasivas de manutenção e salvamento” devem ser limitadas a pacientes que apresentam boas probabilidades de ter um desfecho favorável. Explicam ainda que “cuidado desproporcional é definido como o uso de tais medidas avançadas de manutenção da vida em pacientes com expectativas secundárias” e “disfunções orgânicas mais crónicas […] e/ou baixa qualidade de vida”. Ora segundo o raciocínio que aqui é apresentado, “em circunstâncias normais, quando não há pressão sobre as UCI”, estes mesmos “cuidados desproporcionais” devem ser evitados a “todo o custo”.
“A pandemia da Covid-19 representa uma grande pressão sobre o sistema de saúde, devido à ausência de imunidade”, explicam. Isto faz com que seja inevitável que em muito pouco tempo muitos pacientes precisem de suporte respiratório, por exemplo, e nem sempre os países estão preparados para isso — “em Itália, a capacidade do sistema de saúde era
insuficiente para lidar com o grande número de pacientes, levando ao colapso da assistência médica. Em particular, a quantidade de camas para cuidados intensivos revelou-se um funil crítico do sistema e as projeções atuais para o futuro próximo são alarmantes.”
É aqui que entra o momento crítico que qualquer profissional de saúde teme, o ponto onde a sobrecarga é tal que passar a ser impossível não tomar “decisões éticas importantes”, como escolher “quais os pacientes que serão admitidos e a quais serão negados cuidados críticos.” A inevitabilidade deste momento, pelo menos em situações de sobrecarga extrema de um sistema de saúde, faz com que a principal prioridade seja tomar “as medidas certas para maximizar a capacidade” nas UCI.
Antes de tudo, um aviso
A identificação oportuna de “cuidados desproporcionais” é de uma importância extrema em situações de sobrecarga, porque sem ela pode-se negar cuidados a um “paciente com uma boa hipótese de sobrevivência” porque muitos outros, com prognósticos menos favoráveis, “estão a ocupar uma cama.”
Segundo o trabalho belga, é importante definir estes “cuidados desproporcionais” com base numa “estimativa cientificamente fundamentada” da expectativa/resultado, sendo esta feita com base na mistura de vários fatores: “Conhecimento de um plano de atendimento avançado, a condição médica do paciente, os antecedentes, a evolução aguda da sua condição e uma estimativa fundamentada do seu prognóstico com e sem terapias intensivas.”
Uma noção importante é também a de que “embora uma idade mais avançada esteja associada a piores resultados”, ela sozinha não é suficiente para definir a triagem. Fatores como a “fragilidade e cognição reduzida”, por exemplo, podem ser mais importantes num processo de previsão de resultados no momento em que um idoso é admitido numa UCI.
Planear com antecedência
Neste cenário pandémico em que os idosos são o principal grupo de risco, os lares são autênticos barris de pólvora de contágio. É sobre este panorama que se debruça a primeira medida deste estudo, que começa por reconhecer que os idosos residentes em lares “normalmente sofrem de graves deficiências cognitivas, físicas ou sociais” que os impedem de ter uma “vida independente em casa”. Tendo isto em conta, e estando quase certo o cenário de sobrelotação hospitalar generalizada, “é importante”, dizem “que os pacientes para os quais os cuidados críticos seriam desproporcionais sejam identificados precocemente”, isto para evitar que sejam enviados desnecessariamente para hospitais já sobrelotados.
Isto significa que “um plano de atendimento avançado deve ser discutido com os residentes das casas de repouso ou com seus parentes” atempadamente, porque numa fase mais grave não só não seria possível fazê-lo porque a saúde da pessoa em questão não daria grandes margens mas também porque seria ética e emocionalmente negativo “solicitar às famílias que tomem uma decisão tão difícil”. Aquilo que a Belgian Society of Intensive Care Medicine recomenda, então, é que este plano de cuidados especifique que intervenções poderiam ser consideradas e quais seriam indesejáveis para cada paciente. Recomendam ainda que nesse documento haja declarações específicas sobre:
- Reanimação cardiopulmonar;
- Admissão no hospital;
- Admissão em UCI;
- Intubação;
- Ventilação mecânica não invasiva;
- Suporte hemodinâmico farmacológico;
- Substituição renal.
Como alternativa ao internamento, sugerem também que o idoso, caso seja “possível e viável”, possa ser mantido no lar ou em casa “para receber terapia sintomática”, por exemplo.
Considerações éticas para a triagem no hospital
Este é o ponto essencial deste estudo e surge como um apanhado de sugestões, organizadas por pontos, que inclui considerações como:
- A decisão de negar ou priorizar cuidados deve sempre ser discutida entre pelo menos dois médicos (preferencialmente três) com experiência no tratamento de insuficiência respiratória em Unidades de Cuidado Intensivo. Caso não seja possível fazer essa consulta ao vivo deve ser utilizada a teleconsulta, por exemplo, com um colega experiente dentro da mesma rede hospitalar;
- Deve ser avaliado, logo no momento da admissão, se um paciente tem um plano de tratamento avançado ou não;
- Em pacientes idosos, o comprometimento cognitivo deve ser avaliado e levado em consideração;
- Em todos os pacientes, doença oncológica terminal e outras doenças crónicas graves como falência terminal de órgãos (diálise, insuficiência cardíaca, cirrose hepática, …), devem ser tidas em consideração;
- As prioridades devem ser decididas com base na urgência médica;
- Deve ser mantido um registo das decisões feitas na triagem para garantir a transparência;
- Os médicos envolvidos na triagem devem receber apoio psicológico. Esse suporte
deve continuar até depois da crise terminar e deve envolver também um interrogatório ético.
Este é um resumo de tudo o que é dito no documento que está a ser utilizado como referência para este momento crítico e que é consultável na íntegra aqui.