Morreu um dos mais icónicos cantores e compositores da música americana na segunda metade do século XX, Bill Withers. Dono de uma voz que se notabilizou nos domínios da soul, folk e rhythm and blues, o músico tinha 81 anos. A notícia da morte foi dada pela família, que explicou, em comunicado enviado à agência de notícias Associated Press, que Bill Withers morreu na sequência de complicações de saúde relacionadas com problemas de coração.
Nascido em 1938, o cantor que viria a vencer três prémios Grammy e que se reformou da atividade musical nos anos 1980 gravou e imortalizou canções como “Lovely Day”, “Lean On Me” e “Ain’t No Sunshine”. Com o habitual sentido de humor, diria o seguinte sobre a última, em entrevista à estação pública de rádio norte-americana NPR: “Todas as mulheres que conheci antes dos anos 1970 pensam que essa canção era sobre elas. Proavelmente estão certas”.
Estamos devastados pela perda do nosso amado e devoto marido e pai. Um homem solitário com um coração que o impelia a ligar-se profundamente ao mundo, através da sua poesia e música, falou de forma honesta às pessoas e ligou-as umas às outras. (…) A sua música pertence ao mundo para sempre. Neste tempo difícil, rezamos para que a sua música ofereça conforto e entretenimento aos fãs, que estão a apegar-se firmemente aos seus entes queridos”, refere o comunicado, de acordo com a agência de notícias Associated Press
Um “hit” logo a abrir (e um álbum de estreia inesquecível)
Órfão de pai (que trabalhava em minas de carvão) desde os 13 anos, nascido numa zona rural e pobre dos EUA, Bill Withers encontrou, durante os anos 1970 e após uma passagem pela Marinha norte-americana (estudou mecânica de aviões, por “não querer ser um cozinheiro ou um comissário de bordo”, como lhe vaticinavam no setor da aviação aqueles que “pensavam que era geneticamente inferior” por ser negro) a sua verdadeira vocação. Era a música, que o ajudou também a ultrapassar um dos seus grandes traumas de infância: a gaguez.
O músico recordaria assim, em entrevista à revista Rolling Stone, o período antecessor ao seu início de carreira, que o fez apaixonar-se por canções e que o fez compor música muito ancorada na guitarra acústica (historicamente próxima de géneros mais associadas à cultura branca, como a folk e o country) mas com influências da soul, do rhythm and blues e do gospel, mais associados à história da música afroamericana:
Vivia exatamente na fronteira entre um bairro negro e um bairro branco. Ouvia tipos tocarem música country e na igreja ouvia gospel. Havia música em todo o lado.”
O primeiro disco do compositor e cantor norte-americano, que entre a passagem pela Marinha e a atividade musical garante ter sido “o primeiro leiteiro negro” norte-americano e ter trabalhado numa fábrica de peças de aviões, foi editado em 1971 e é atualmente considerado um dos álbuns mais importantes da história da soul, folk e rhythm and blues dos EUA. Intitulado Just as I Am, foi maioritariamente composto por Bill Withers, à exceção de duas versões de canções alheias, dos The Beatles (“Let It Be”) e de Fred Neil (“Everybody’s Talking”).
[“Harlem”, a canção com que Bill Withers arranca o seu primeiro álbum ‘Just As I Am’:]
Ao sucesso do álbum de estreia de Bill Withers muito contribuíram os singles “Grandma’s Hands” e sobretudo “Ain’t No Sunshine”, este último um êxito maior na carreira do músico e uma das canções mais reconhecidas da história da música popular norte-americana das últimas décadas. Todo o disco, aliás, é atualmente considerado um clássico, não apenas pelos méritos reconhecidos de composição e interpretação vocal de Bill Withers, mas também pelas contribuições de músicos com a dimensão de Booker T. Jones (assegurou a produção musical, delineou os arranjos das canções e tocou guitarra e teclado), Stephen Stills (tocou guitarra), Donald “Duck” Dunn (baixo) e Al Jackson Jr. (na bateria).
O álbum de estreia do músico viria a dar a Bill Withers o seu primeiro prémio Grammy, aliás, em 1972 e na categoria de “Melhor Canção de R&B”, reconhecendo-se assim o impacto de “Ain’t No Sunshine”. Curiosamente, foi também apenas perante o sucesso do disco que Bill Withers acabou por deixar o trabalho diurno que ainda mantinha e que conciliava com a música, numa fábrica de peças de aeronaves.
O sucesso de “Lean On Me” e uma mudança de editora
Pela editora de Los Angeles Sussex Records, que tinha em Bill Withers a sua jóia da coroa — era o artista mais popular e comercialmente bem sucedido do catálogo de uma discográfica que tinha também um pouco conhecido à época, hoje aclamado, Sixto Rodriguez —, o compositor e cantor lançou ainda mais dois álbuns.
O primeiro álbum de Bill Withers depois da estreia discográfica foi Still Bill, editado em 1972 e que se tornou um dos discos mais aclamados por público e crítica da carreira de Withers, com êxitos como “Use Me” e sobretudo “Lean On Me”. O segundo foi +’Justments, um disco que, apesar de um single de sucesso — “The Same Love That Made Me Laugh” —, não logrou nem o impacto comercial nem o reconhecimento e consenso entre críticos conseguido nos dois álbuns antecessores.
Houve ainda o registo discográfico paralelo de um concerto dado por Bill Withers na prestigiada sala de espetáculos novaiorquina Carnegie Hall — o disco com as gravações da atuação foi editado em novembro de 1972, com o título Bill Withers, Live At Carnegie Hall.
[“Lean On Me” foi outro dos grandes êxitos da carreira de Bill Withers:]
Na segunda metade dos anos 1970, após falência da Sussex Records, Bill Withers passou a editar por uma major norte-americana, a Columbia Records, detida pelo grupo Sony. A relação com a editora, contudo, não foi sempre pacífica e apesar de alguns álbuns editados como Making Music (editado no Reino Unido com o título Making Friends), Naked & Warm, Menagerie (que incluiu o êxito “Lovely Day”) e ‘Bout Love, a que se somaram colaborações como o tema “Just the Two of Us” (incluído já em 1980 no álbum Winelight, do saxofonista Grover Washington Jr.), o músico e cantor perdeu alguma da notoriedade conquistada no início da década.
Nos anos 1980, Bill Withers editou apenas um álbum próprio, que viria também a ser o último da sua carreira — Watching You Watching Me, em 1985 — tendo-se dedicado mais a colaborações com grupos e artistas, como os The Crusaders e o francês Michel Berger.
A intermitência nas edições resultou de diferendos entre o músico e a editora: Withers queixava-se de que a discográfica com que tinha assinado contrato limitava a sua liberdade artística, não permitia a edição de álbuns com a sonoridade que o músico procurava e tentava condicioná-lo e orientar a música que fazia para estéticas que os executivos da Columbia Records consideravam mais apelativas para o público. Mais do que isso, terá sido alvo de racismo na Columbia Records, segundo se queixa: os executivos da editora ter-lhe-ão dito que “não gostavam de música negra, de modo algum” e denotado uma hostilidade que incompatilizou a relação desde cedo.
Não havia executivos [da editora] negros. Diziam-me porras como (…) porque é que esta introdução é tão longa? Havia um tipo na Columbia, o Mickey Eichener, que era um chato do caraças. Dizia-me para gravar uma versão da “In the Ghetto” do Elvis Presley. Sou um compositor! Isso seria como pagar uma bebida ao bartender”, chegou a dizer, à revista Rolling Stone. O mesmo Mickey Eichener tinha uma versão diferente da história, considerando Withers “muito teimoso”
Foi assim, no meio de um desencanto notório e assumido com a indústria musical (para o qual contribuiu também a sensação de que ganhava menos do que outros artistas de craveira semelhante ou inferior, apenas por ser negro), que Bill Withers retirou-se da música em 1985, tinha então 47 anos e pouco mais de duas décadas de atividade musical — embora o músico considerasse que a sua carreira durou apenas oito anos, que englobavam o período da década de 1970.
Apesar do distanciamento dos holofotes, a notoriedade e impacto de Bill Withers na cultura popular e na história da música norte-americana foram-se robustecendo com a passagem do tempo, com o lançamento de canções antigas gravadas mas nunca lançadas à época pelo artista e com a popularidade sempre crescente dos êxitos gravados nos anos 1970.
Há apenas cinco anos, em 2015, o músico que tinha então 76 anos entrou na galeria de ilustres do Rock and Roll Hall of Fame. Nesse mesmo ano, em entrevista à revista Rolling Stone, afirmava: “Cresci na era da Barbra Streisand, Aretha Franklin, Nancy Wilson. Era uma altura em que uma pessoa feia, gorda e larga que sabia cantar tinha valor. Agora, só interessa a imagem. Não é poético. Este simplesmente não é o meu tempo”. Sobre a então recente entrada no Rock and Roll Hall of Fame, confessou-se surpreendido: disse que nunca fora “um virtuoso” mas tinha sido “capaz de escrever canções com que as pessoas se identifiquem”, pelo que “acho que não me dei mal para um tipo vindo de Slab Fork, na West Virginia”. E contava com humor uma história recente:
Um ministro muito famoso na verdade ligou-me para saber se eu tinha morrido ou não. Eu atendi-o e disse-lhe: deixe-me confirmar.”
Questlove, membro da banda de funk e hip-hop The Roots, viria a descrevê-lo prosaicamente: “O Bill Withers é o mais próximo que a população negra tem de um Bruce Springsteen. É o meu herói”. Bem tentou convencer Bill Withers a voltar gravar um disco, produzido por ele, mas não conseguiu: o veterano manteve-se irredutível e contou em 2015 que recusou incontáveis propostas para voltar a atuar ao vivo ou gravar.
O que mais preciso de comprar? Tenho simplesmente tanta sorte. Tenho uma boa mulher, que me trata como ouro. Não a mereço. Estou muito feliz com o estado em que está a minha vida. Este trabalho [música] apareceu-me quando já tinha mais de 30 anos”, explicava há cinco anos.
Bill Withers deixou dois filhos, Todd Withers e KoriWithers, resultantes de um segundo casamento com Marcia Johnson — tinha estado anteriormente casado, por um período curto de dois anos, com a atriz Denise Nicholas.