Os portugueses têm o direito à resistência se os seus direitos, liberdades e garantias estiverem a ser restringidos de forma ilegal. E ilegal, neste caso, é sinónimo de a Constituição da República Portuguesa estar a ser violada pelas medidas anunciadas pelo Governo para conter a propagação do novo coronavírus. Mas estará? É nesse ponto que nem todos os constitucionalistas estão de acordo. Se há quem defenda que só a Assembleia da República pode legislar quando se trata de direitos de cidadãos, como previsto na Constituição, também há quem defenda que ao abrigo do estado de calamidade o Executivo de António Costa tem poder para decretar medidas até mais gravosas do que as conhecidas esta quinta-feira.
Ao final da tarde, o primeiro-ministro falou aos portugueses e, em conferência de imprensa, explicou as primeiras regras do novo calendário do desconfinamento. O país vai reabrir em três fases e se há setores que regressam ao trabalho já na segunda-feira, outros terão de aguardar por 18 de maio ou por 1 de junho. Isto se não for preciso, pelo caminho, dar nenhum passo atrás como explicou António Costa, garantindo que o fará se for necessário.
O constitucionalista Paulo Otero opta pela prudência e defende que é necessário aguardar pela publicação do diploma com as medidas, já que no anúncio do primeiro-ministro não se percebe qual será a formulação jurídica escolhida — e isso fará toda a diferença. Se for uma Resolução de Conselho de Ministros, admite que será uma “trapalhada jurídica”.
“Por exemplo, por que motivo as celebrações religiosas só são permitidas no final de maio? Podemos ir ao comércio, mas não podemos ir aos templos religiosos? Esta limitação ou restrição à liberdade de culto só pode ser feita por ato legislativo”, defende o professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que entende que restringir o número de pessoas que pode estar numa missa, ou noutra celebração religiosa, não tem cobertura jurídica se for evocado o estado de calamidade.
Quem fala na liberdade de culto, fala na liberdade de deslocação. Ou no direito de reunião que também é um direito fundamental que só pode ser restringido por via legislativa”, diz o constitucionalista, lembrando que estão proibidas reuniões com mais de 10 pessoas.
No entendimento de Paulo Otero, a situação de calamidade é uma figura administrativa que apela a uma intervenção administrativa, não política, nem legislativa, e que não dá cobertura jurídica às medidas anunciadas. A solução teria sempre de passar pelo Parlamento e o professor catedrático ainda acredita que o Governo poderá salvar a face se optar, por exemplo, por um pedido de autorização legislativa ao Parlamento.
A constitucionalista Teresa Violante tem uma opinião semelhante, mas acredita que o Governo apresentará a solução legislativa através de uma Resolução de Conselho de Ministros, proferida ao abrigo da lei de Bases da Proteção Civil e do estado da calamidade. E como a violação, ou não, da Constituição depende, na sua opinião, “do fundamento legal que for utilizado”, se este for o caminho seguido vê-o como muito problemático.
“É verdade que o estado de calamidade dá um certo reforço aos poderes do Governo, mas tenho dúvidas de que esta base legal seja suficiente para manter em vigor, ainda que com alguns recuos, a suspensão de direitos fundamentais”, defende. Como exemplo aponta a liberdade dos trabalhadores, que segundo as medidas do Governo se deverão manter em teletrabalho até final de maio, ou a liberdade de aprender e ensinar, já que a maioria dos estudantes não regressará às escolas.
“O quadro geral de suspensão de direitos fundamentais vai continuar ao abrigo de uma legislação que não foi pensada para casos destes”, diz Teresa Violante, lembrando que quando a Lei de Bases da Proteção Civil foi alterada era António Costa quem estava à frente do Ministério da Administração Interna. “Na altura, António Costa disse no Parlamento que a intenção era criar um um estado de emergência abaixo do estado de emergência constitucional”, recorda.
No entanto, não é suficiente. “Não vejo habilitação suficiente para dar estes poderes ao Governo. O órgão primordial para restringir direitos, liberdades e garantias é a Assembleia da República e vejo com grande dificuldade que ela não seja envolvida neste processo”, argumenta a constitucionalista.
Paulo Otero defende haver duas saídas para dar sustentação jurídica às novas regras do desconfinamento: “Ou o Governo apresenta uma proposta de lei junto do Parlamento ou pede uma autorização legislativa. Uma Resolução de Conselho de Ministros não é idónea.”
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Outro constitucionalista ouvido pelo Observador tem uma ideia diametralmente oposta. Jorge Reis Novais defende que problema de violação da lei fundamental existia antes, durante o estado de emergência. “Agora não há problema jurídico nenhum, há a saudar o facto de acabarem as inconstitucionalidades que estavam a ser cometidas durante o estado de emergência.”
Como exemplo dá a obrigatoriedade que vigorou de pessoas não doentes terem de ficar confinadas e a diferença de tratamento entre as pessoas acima e abaixo dos 70 anos. “Essas eram inconstitucionalidades ostensivas que foram cometidas durante um mês e meio pelo Presidente da República e pelo primeiro-ministro”, defende o professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Na sua opinião, ao abrigo do estado de calamidade, o Governo poderia até até ir mais longe em termos de restrições. “Já há leis aprovadas pelo Parlamento, como a Lei de Bases de Saúde ou a da Proteção Civil, que dão poder ao Governo para nas situações de calamidade tomarem este tipo de decisões.” E não concorda com a opinião de Paulo Otero e Teresa Violante que perspetivam problemas futuros que irão terminar nos tribunais.
Via parlamentar é a mais segura
Para resolver um potencial imbróglio jurídico, Teresa Violante diz que o mais seguro era que as restrições às liberdades dos portugueses passassem pelo Parlamento. “Não vejo justificação para não o fazer. Durante o estado de emergência houve diplomas do Governo aprovados e a Assembleia da República esteve sempre muito colaborante. Enquanto as iniciativas dos deputados têm estado a seguir o processo normal, houve um processo acelerado para as do Governo. Não vejo razões para não haver agora essa partilha com o Parlamento.”
Paulo Otero recorda o artigo 165.º da Constituição, onde se lê que é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre direitos, liberdades e garantias. “Poderia haver um reforço de legitimidade se se optasse por um decreto lei, que sempre tem de ser promulgado pelo Presidente da República. Se for uma Resolução de Conselho de Ministros, que é publicada em Diário da República, e na qual o Parlamento não tem intervenção, não é uma solução idónea.”
Acima de tudo, Teresa Violante argumenta que houve tempo para acautelar esta situação e evitá-la. “Outros países prepararam os seus sistemas jurídicos, mudaram a legislação que tinham de mudar. Isso, em Portugal, não foi feito.”
Inevitável é que a situação chegue aos tribunais. Para além do direito de desobediência, ideia também defendida por Paulo Otero, acredita que os cidadãos poderão apelar aos tribunais. “Em vários países há impugnações em massa das decisões tomadas pelos governos a chegar aos tribunais. É inevitável que cheguem também aos nossos. Sabendo que no fim da linha vão estar os tribunais, o Governo não preveniu os problemas mais difíceis e vai deixar que sejam os tribunais a desenrolar esses novelos jurídicos. Vai colocar os tribunais e o Tribunal Constitucional ainda mais em situação de stress”, conclui.