Talvez a retirada de confiança mais mediática da história recente da política nacional tenha acontecido com Joacine Katar Moreira e o partido Livre, do qual era deputada única na Assembleia da República no início da atual legislatura, mas esta história, a de um eleito se afastar das posições oficiais do partido, não é nem nova e nem sequer exclusivo da esquerda ou da direita. Sobretudo, se olharmos para o que se passa a nível local.
Mas nem todas têm o picante da mais recente rutura política. Ou, dito de outro modo, nem todas conseguem varrer um espectro tão grande do ponto de vista ideológico: começar no Bloco de Esquerda e acabar com suspeitas de aproximação ao Chega. E foi exatamente isto que aconteceu no município de Salvaterra de Magos, no distrito de Santarém, com uma deputada eleita nas autárquicas de 2017 como cabeça-de-lista à Assembleia Municipal.
Quem seguia a política local, provavelmente não ficou surpreendido com o desfecho da história. Afinal, a desavença era tudo menos nova e tinha mais as características do problema que “antes de ser, já o era”. Marta Jorge foi eleita em 2017 nas listas do Bloco de Esquerda, mas como independente (e aqui deixamos a primeira pista para o fim da relação problemática). Se nos “primeiros tempos” de mandato tudo correu dentro da “normalidade” — como Marta Jorge descreve ao Observador —, há mais de um ano que a química entre a deputada e o partido pelo qual foi eleita tinha esfriado. O motivo? Para Marta Jorge, o Bloco de Esquerda municipal estava a aproximar-se demasiado da ideologia do BE nacional (mais uma pista: a deputada foi deixando várias indicações do seu descontentamento, tanto que votou desalinhada com o partido algumas vezes).
E a relação chegou mesmo ao fim, cada um para seu lado. A notícia da retirada da confiança política foi inicialmente avançada pelo jornal Mais Ribatejo, que citava uma nota da concelhia do Bloco de Esquerda de Salvaterra de Magos, afirmando que a decisão era uma consequência das decisões tomadas publicamente “através das redes sociais” pela deputada e que revelavam “envolvimento e simpatia por posições políticas incompatíveis com os ideais do 25 de abril e com o programa eleitoral do Bloco”.
Ainda que não seja diretamente referido na nota, na origem deste episódio terá estado um comentário de Marta Jorge a uma publicação de um militante do – nada mais, nada menos – Chega, onde apelidou o discurso de André Ventura de “memorável”: “Um discurso memorável que identifica os portugueses descontentes com uma “ditadura” vestida com os trajes da democracia!”, escreveu Marta Jorge.
Mais tarde, à agência Lusa a deputada municipal justificou o comentário como tendo “direito à opinião”, frisando que se dirigia a uma questão concreta, a da corrupção. A mesma ideia tinha já deixado num dos comentários posteriores na mesma publicação: “Quanto ao meu comentário a uma publicação tua, ainda por cima a criticar a corrupção, que eu acho, que deveria ser uma bandeira de todos os partidos políticos, tornar-se uma “ofensa” para o BE leva qualquer um a tirar as suas conclusões”, escreveu Marta Jorge.
Mas é a própria deputada a afirmar que este desfecho só é surpreendente para quem não conhecia o seu percurso e as suas convicções. “Provavelmente quem não é mais atento achou uma grande surpresa, quem for mais atento e tenha noção do meu percurso político, mais tarde ou mais cedo iria acontecer”, diz ao Observador Marta Jorge acrescentando ainda que a sua ideologia política “sempre foi considerada mais à direita”.
A deputada municipal garante que o “Bloco de Esquerda tinha conhecimento” do seu posicionamento ideológico mais à direita (e aqui ficou a pista principal para o fim da relação, que o BE terá ignorado) e que apoiava apenas um projeto coordenado pela ex-presidente da autarquia , a “Anita” — Ana Cristina Ribeiro, que esteve à frente da autarquia até 2013.
Aquilo que apoiei foi um projeto que estava a ser coordenado pela Anita, não o Bloco de Esquerda porque não me identifico com as políticas defendidas pelo Bloco de Esquerda a nível nacional“, clarifica Marta Jorge acrescentando: “O projeto não era ideologicamente do Bloco de Esquerda, era o projeto de uma pessoa, independente”.
E, de facto, os antecedentes políticos da deputada já contavam uma história que se não apontava claramente para este desfecho, pelo menos indiciava que a probabilidade era grande: Marta Jorge já tinha sido eleita deputada municipal pelo PSD, no concelho, entre 1997-2001 e mais tarde ainda pelo Movimento de Cidadãos Independentes do qual foi também fundadora. Quanto à atual ligação com o Bloco de Esquerda, segundo a deputada municipal, “há cerca de um ano, ano e meio” já tinha havido da sua parte uma tentativa de se afastar.
O motivo da ameaça de afastamento? A postura do Bloco de Esquerda municipal estava a “derivar demasiado” para a postura do Bloco de Esquerda Nacional. E isso era uma divergência em relação ao projeto que apoiava e que a levou a ser eleita como independente, na lista do Bloco de Esquerda. Em Salvaterra de Magos, o BE perdeu as autárquicas, em 2017, para o PS. Um dos pontos de diferença entre o Bloco de Esquerda em Salvaterra de Magos e o Bloco de Esquerda nacional diz respeito, por exemplo, às touradas ou outros espetáculos com animais. O BE é contra, mas em Salvaterra de Magos apoiou a candidata “Anita” que se assumia como “apaixonada por touradas e também pelos touros de morte”.
Ao Observador, Marta Jorge conta que, depois de ter decidido afastar-se, acabou por “reconsiderar para não prejudicar todo o grupo de trabalho”. Mas não deixa de recordar que, ao longo do mandato, em “várias votações”, teve uma orientação diferente dos restantes membros do partido.
Numa relação que parece ter sido construída sobre pilares de areia, com princípios ideológicos diferentes e difíceis de conciliar, fica por perceber se o BE desconhecia o historial da candidata. O Observador tentou ouvir a concelhia de Salvaterra de Magos e o Bloco de Esquerda nacional sobre a inclusão de candidatos nas listas que assumem claramente um posicionamento diferente do do partido, mas ambos remeteram para o comunicado divulgado pela concelhia a dar conta da retirada de confiança política a Marta Jorge.