Foi suspensa a produção e a distribuição de kits para testes de despistagem da Covid-19 que já estavam a ser usados em Portugal depois da recusa do Infarmed de dar um parecer positivo às zaragatoas com meio, os principais elementos do conjunto. A decisão de parar a produção foi tomada pelo consórcio responsável por este produto, que voltou a afirmar que ele é seguro e eficaz.
A autoridade nacional do medicamento ordenou que os kits não fossem distribuídos depois de ter analisado o relatório de avaliação dos requisitos de segurança e desempenho à zaragatoa com meio, enviado pelo Algarve Biomedical Center (ABC) da Universidade do Algarve, um dos quatro elementos do consórcio. O Infarmed teve dúvidas quanto à segurança e eficácia e enviou questões ao consórcio. Quando isso aconteceu, já pelo menos 48 mil kits tinham sido distribuídos por centros de investigação, que os utilizaram para realizar testes em lares de idosos e creches.
“Perante a resposta do Infarmed ao relatório, recebida ontem, dia 23 de maio, ao fim da tarde, na qual é pedido para suspendermos a produção e distribuição dos kits, assim o fizemos ainda no sábado. Neste momento, estamos a trabalhar para responder às questões colocadas pelo Infarmed“, adiantou Nuno Marques, presidente do ABC, ao Observador. O Infarmed tinha avançado que a decisão foi comunicada no dia 22 de maio e não dia 23, como afirma Nuno Marques.
O responsável pelo centro de investigação disse ainda que o meio de transporte viral — o líquido onde as zaragatoas são colocadas após a recolha do material biológico, de forma a preservá-lo até que seja feita a análise laboratorial — foi feito com base numa receita do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) e que a produção das zaragatoas “obedeceu a critérios científicos, tendo sido submetidas a vários testes de controlo de qualidade que deram a garantia de segurança e comportamento semelhantes às poucas zaragatoas existentes no mercado.” Algo que, aliás, já tinha afirmado ao Observador.
A produção dos kits não foi feita à revelia nem sem o conhecimento das diferentes autoridades do país”, garantiu Nuno Marques, que indicou terem sido “intensificados os testes aos kits” após algumas questões colocadas pelo Infarmed. “Todos eles mostraram qualidade e eficácia que nos deram confiança para os disponibilizar a outros centros académicos do país e para os utilizar em rastreios. Os resultados destes rastreios nunca colocaram em causa a segurança dos kits.”
Tal como já tinha referido ao Observador, para o presidente do ABC, só havia duas hipóteses: ou dar resposta “face a uma necessidade urgente” do país ou “deixar milhares de pessoas por testar e nada fazer, dependentes de processos meramente burocráticos”.
“Estamos de consciência tranquila. Agimos, em articulação e com transparência, em prol do país e das suas necessidades. Não houve qualquer ganho comercial ou contrapartida financeira. Tratou-se tão somente de colocar o conhecimento científico ao serviço da sociedade.”
Nuno Marques fez ainda referência às declarações da ministra da Saúde, na habitual conferência de imprensa diária relativamente à situação epidemiológica do país, destacando que Marta Temido “referiu não estar em causa a segurança e eficácia dos testes, mas sim questões relacionadas com critérios de introdução dos mesmos no mercado”.
Contudo, este não é o entendimento do Infarmed que proibiu tanto a colocação no mercado da zaragatoa com meio, como a sua disponibilização “a título oneroso ou gratuito, a qualquer entidade ou instituição para fim de recolha de amostras em seres humanos”.
O Observador pediu ao ABC para enviar uma lista das entidades que receberam os kits do consórcio, mas o centro não irá enviar esses nomes.
Hidrofer mantém confiança nas zaragatoas: “Isto é no mínimo excesso de zelo”
Já o administrador da Hidrofer, a empresa que produz as zaragatoas, considerou que a decisão do Infarmed é “excesso de zelo”, uma vez que os testes realizados foram pedidos pela autoridade nacional do medicamento e têm respeitado as normas internacionais.
Acho que isto é no mínimo excesso de zelo, porque todos os testes que pediram foram feitos. Do conhecimento que tenho, do Técnico no que respeita a esterilização, tudo está a ser feito de acordo com Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Infarmed, no fundo, está a pôr em questão aquilo que está descrito nas regras da OMS”, afirmou Hélder Silva ao Observador. “No fundo, prejudica o país.”
O responsável pela empresa de Vila Nova de Famalicão disse não saber ao certo quais foram as dúvidas do Infarmed, porque ainda não teve acesso ao relatório, mas já suspendeu a produção das zaragatoas até haver parecer positivo por parte da autoridade.
E garantiu que continua a ter confiança no seu produto: “Temos a certeza de que não precisamos de alterar nem uma vírgula para que as zaragatoas possam ser aprovadas. É apenas uma questão de justificações e não de qualidade de produto”, disse Hélder Silva. “Estou à vontade para poder dizer que são, se calhar, as melhores que estão no mercado neste momento. Não conheço todas as que existem no mundo, mas de todas aquelas com que nós comparámos, são realmente boas. ”
Relativamente à distribuição dos kits, Hélder Silva refere que o Infarmed estava a par do que se estava a passar. “O Infarmed não se pode pôr de lado a dizer que não sabia que eles estavam a ser distribuídos porque sabia. Para além de estar a acompanhar [o processo], também qualquer pessoa minimamente informada sabia que os kits estavam a ser feitos, tinha sido celebrado o consórcio.”
Já o presidente da Logoplaste, empresa responsável pelos tubos herméticos onde é colocado o meio de transporte viral, espera que toda esta questão com o Infarmed não seja uma “desnecessária burocracia”.
“Não somos suficientemente conhecedores do processo da legalização para comentar o facto. E que esperamos que não seja uma desnecessária burocracia aquilo que se está a passar ou o habitual custo de contexto de Portugal“, afirmou Filipe de Botton ao Observador.
IST: “esclarecimentos técnicos” serão prestados “durante os próximos dias”
O Instituto Superior Técnico, responsável pela esterilização das zaragatoas e dos tubos, adiantou ao Observador que, no documento enviado pelo Infarmed ao consórcio, são apenas pedidos “esclarecimentos técnicos”, que serão prestados “durante os próximos dias”.
“Após a prestação de tais esclarecimentos técnicos, estamos em crer, que serão rapidamente levantadas as restrições ontem colocadas pela entidade reguladora, numa prática de elevada prudência, que será normal (e desejável) quando de dispositivos de uso médico se trata”, lê-se numa nota enviada ao Observador pelo presidente do IST.
Rogério Colaço adianta ainda que a palavra “segurança” apenas surge no título do documento da autoridade nacional do medicamento — intitulado “Apreciação do relatório de avaliação de segurança e desempenho “Zaragatoas estéreis e tubo estéril com meio de transporte viral” — e que, ao longo do texto, “menos ainda é colocada em questão a ‘segurança’ para os utilizadores e testados destes dispositivos médicos, para os fins a que se destinam”.
O responsável pelo Técnico garantiu ainda “a qualidade, e total segurança” dos kits, que foram “produzidos e testados em alguns dos mais avançados laboratórios de investigação e desenvolvimento do país, com a produção devidamente enquadrada legalmente nos termos do Decreto-Lei 14-E/2020”. E referiu que manteve sempre “informado o Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge e o Infarmed, como agora é já do domínio público”.
Governo não respondeu às perguntas
O Observador voltou a questionar várias entidades envolvidas neste processo para obter mais esclarecimentos. Aos Ministérios da Saúde e do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, perguntou quantas pessoas foram testadas com estes kits e se iriam ser novamente testadas. O Ministério de Marta Temido remeteu para as declarações da governante na conferência de imprensa.
Já o Ministério de Ana Mendes Godinho considerou que será necessário aguardar a conclusão da avaliação do Infarmed, mas sublinha que “os centros de investigação com quem o MTSSS estabeleceu parceria para a realização de testes nas respostas sociais têm a validação do INSA para os testes de análises que efetuam, pelo que está assegurada a sua validade.”
E também faz referência às palavras da ministra da Saúde, durante a conferência de imprensa, em que Marta Temido referiu a importância de “distinguir os critérios de realização de testes de análise dos critérios de comercialização no mercado”.
Nas questões enviadas ao Infarmed, o Observador procurou saber quais foram as dúvidas levantadas pelo relatório enviado pelo ABC, que perguntas foram colocadas ao consórcio e até quando teriam de obter uma resposta. Até ao momento, contudo, não obteve resposta.
O Observador também enviou perguntas ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, uma vez que o ministro Manuel Heitor não só esteve presente na visita à Hidrofer, como foi um dos ministros a presidir à criação do consórcio e, nessas ocasiões, falou da produção e da exportação destes kits. Tal como nas restantes entidades, o Observador ainda aguarda resposta.
Artigo atualizado às 21h18