A descapitalização das companhias de teatro, com a paralisação, desde março, e os custos da reabertura, com encargos acrescidos para desinfeção de instalações, são obstáculos apontados por entidades contactadas pela agência Lusa, sobre o regresso à atividade.
Há quem esteja satisfeito, com a possibilidade de a plateia poder acolher um número de espetadores, que viabilize a realização de espetáculos, como destaca o Teatro Nacional D. Maria II e A Barraca. Mas há quem lembre a falta de coerência de se limitarem lugares em salas de teatro e cinema, e de se permitirem viagens de avião com lotação esgotada.
De uma maneira geral, as companhias pensam estratégias para o regresso ao palco, em função das normas anunciadas pelo Ministério da Cultura, na passada terça-feira, para a reabertura das salas e os espetáculos ao ar livre, e esta quinta-feira incluídas nas orientações publicadas pela Direção-Geral da Saúde para o setor.
Nessa reflexão, algumas companhias, como o Teatro Praga e o Teatro Meridional, não deixam de assinalar que a paralisação imposta pela Covid-19 “podia ter sido uma oportunidade para se repensar a cultura”. Mas a precariedade do setor evidenciou também “uma precariedade política que não transmite confiança nem valoriza inequivocamente” a Cultura em Portugal, como afirmaram.
Teatros, salas de espetáculos e cinemas podem reabrir, a partir de segunda-feira, com todas as filas ocupadas e um lugar de intervalo entre os espectadores, que serão obrigados a usar máscara. Os espetáculos ao ar livre, onde o uso de máscara não é obrigatório, terão de ter lugares assinalados, indicam as regras, conhecidas desde terça-feira, anunciadas pelo Ministério da Cultura.
O diretor artístico dos Artistas Unidos, Jorge Silva Melo, congratula-se com o aparecimento de normas, mas sublinhou à agência Lusa que, “por enquanto, ainda não vai decidir nada [quanto à reabertura], porque já decidiu várias coisas ao longo da pandemia de Covid-19 e, dois dias depois, [as regras] mudavam e era tudo diferente”.
Por isso, só na sexta-feira de manhã, a direção da companhia, com sede no Teatro da Politécnica, em Lisboa, se irá reunir para decidir o que fazer, já que, ao abrigo das normas impostas pelo Ministério da Cultura, ficam com capacidade para acolher 40 espectadores em sala, o que lhe parece “mais saudável” do que a proposta provisória que apontava para uma lotação máxima de 17 pessoas, o que era “angustiante”.
A única decisão já tomada é que os Artistas Unidos recomeçam a atividade em julho, com a reposição do monólogo “Uma Solidão Demasiado Ruidosa”, a partir da novela homónima do escritor checo Bohumil Hrabal, a apresentar nas Caldas da Rainha. Em agosto, a peça voltará à sala da Politécnica, em Lisboa, onde ficará até setembro, acrescentou à Lusa Jorge Silva Melo.
Nesse mês de abertura de novas temporadas, a companhia estreará “Quartos”, uma peça de Enda Walsh, “muito adequada ao momento que se está a viver”, sublinhou o encenado.
O Teatro da Garagem, com sede no Teatro Taborda, em Lisboa, abre a 1 de junho para a equipa de trabalho, e conta apresentar um “pequeno espetáculo” no final de julho.
Esta reabertura tem, para já, o objetivo de testar “como funciona a sala, já que as primeiras atividades só se realizarão em julho”, disse à agência Lusa a produtora Raquel Matos, da companhia.
“As medidas são bastante ambíguas, deixam muitas coisas por esclarecer, pois cada tipo de trabalho tem orientações específicas”, sublinhou Raquel Matos, acrescentando que estão a fazer “o que lhes é possível”.
O Teatro Praga, por seu turno, com sede na Rua das Gaivotas 6, considera que devia haver uma linha de financiamento para as estruturas independentes, uma vez que estão “completamente descapitalizadas”.
“Por isso, é muito difícil aplicar as medidas de higiene e segurança”, afirmou ator e encenador Pedro Barreiro, sublinhando que o recomeço do Teatro Praga está dependente de uma reunião que terão em breve, para decidirem o que fazer.
“As regras são manifestamente insuficientes e todo este cenário da cultura continua a ser muito pobre e muito triste. A Covid-19 podia ter sido uma oportunidade para se repensar a cultura, mas não se chegou a fazê-lo”, lamenta Pedro Barreiro.
“Talvez consigamos acolher uma residência em julho, mas o mais provável é retomarmos apenas em setembro”, observou.
Maria do Céu Guerra, de A Barraca, está satisfeita por o Ministério da Cultura ter revisto algumas das regras provisórias no que respeita à lotação de salas fechadas. “Estas normas parecem-me mais razoáveis do que as provisórias, embora me pareça que há ainda uma certa confusão com as entradas e as saídas das salas”, disse.
Para a atriz e encenadora, “não se justifica que haja locais diferentes para entrada e saída de espectadores, desde que se estabeleça que os espetáculos não têm intervalo e que as pessoas não andem a mudar de lugares nas cadeiras e que ficam colocadas em xadrez”. “Com estas regras para lotação, é possível realizar espetáculos, o que não acontecia com as normas provisórias”, acrescentou.
Maria do Céu Guerra considera, porém, que não se justifica que as normas para espetáculos em lugares, ao ar livre, “tenham um crivo mais apertado do que para as salas fechadas”. “Não faz sentido nenhum. As normas para espetáculos ao ar livre têm de ser reavaliadas e reequacionadas”, frisou. A Barraca terá os primeiros espetáculos nos dias 5 e 6 de junho, uma iniciativa que reúne música, texto e poesia em torno da obra do poeta e dramaturgo andaluz Federico García Lorca.
“Espanha no coração” é o nome da iniciativa com que A Barraca se pretende solidarizar com a situação que Espanha vive com a pandemia de Covid-19, disse Maria do Céu Guerra, um dos mais afetados a nível mundial, com mais de 27 mil mortos e quase 238 mil casos.
Para o diretor artístico do Teatro Meridional, Miguel Seabra, as normas para as salas de espetáculo merecem-lhe dois tipos de apontamento. Um primeiro, que consiste no facto de as atividades poderem ser retomadas “a conta-gotas, que faz com que o panorama mude quase de semana para semana, o que revela uma tática inteligente por parte do Governo”.
Por outro lado, suscita-lhe uma grande indignação não compreender por que motivo se permitem viagens de avião com lotação esgotada e, ao mesmo tempo, haja normas para a lotação das salas de espetáculo. “É que se isto é muito coerente do ponto de vista económico, não deixa também de ser profundamente triste a outros níveis”, sublinhou.
Miguel Seabra critica ainda o Governo e o Ministério da Cultura por não terem aproveitado a oportunidade que a Covid-19 gerou de “mostrarem que, pelo menos, a ministra protege a Cultura e os fazedores de cultura”. Nunca mostraram que valorizam as pessoas que “fazem cultura”, lamenta Miguel Seabra, sublinhando que, “em momento algum a ministra [Graça Fonseca] deu razões aos agentes da cultura para acreditarem que não deixaria o barco ir ao fundo”.
“A nível cultural continua a haver uma precariedade política que não transmite confiança nem valoriza inequivocamente o setor cultural”, frisa.
O Meridional, que continuou a atividade online durante o confinamento de resposta à Covid-19, só retomará atividade de sala em setembro, já que o espaço vai ser requalificado a nível elétrico, pelo que o teatro ficará fechado durante o verão. “A sala reabre em setembro e quero acreditar que, nessa altura, as normas já sejam outras e menos penosas para as companhias”, concluiu.
Agradada com as normas definidas para as salas de espetáculo está a presidente do conselho de administração do Teatro Nacional D. Maria II, Cláudia Belchior. Os trabalhos de desinfeção do teatro estão em curso há cerca de um mês e as normas agora impostas pela tutela não inviabilizam a realização de espetáculos, como as provisórias, mais limitativas de público. “Com as normas provisórias era quase impossível ter espetáculos na sala Estúdio, enquanto com estas já não é inviável”, exemplificou, em declarações à Lusa.
Embora os espetáculos de sala só recomecem em setembro, o Nacional D. Maria II já abriu portas e iniciou o trabalho sobre os espetáculos da temporada que ficaram “pendurados”, com a suspensão das atividades, em março.
A reabertura de salas de espetáculos, teatros e cinemas, bem como a retoma de eventos culturais ao ar livre está prevista na terceira fase do “Plano de Desconfinamento” do Governo. As regras gerais de reabertura, que pode acontecer a partir de segunda-feira, foram definidas pelo Ministério da Cultura “em diálogo com a Direção-Geral da Saúde (DGS)”.
As regras anunciadas na terça-feira, salientou a ministra da Cultura, Graça Fonseca, à Lusa, “podem ser revistas ao longo do mês de junho, em função da evolução da pandemia”. “Aquilo que gostaríamos era que as salas pudessem abrir a 100%”, partilhou.