E, de repente, um novo livro de Manuel Vilas. A continuação de Ordesa: Em Tudo Havia Beleza, pujante exercício literário a partir de uma série de graves circunstâncias: a morte dos pais, um divórcio, problemas com o álcool, a laboriosa tentativa de comunicação com filhos em idade adolescente. Esta demanda impossível completa-se numa sentença que perdurou na cabeça dos leitores, pais e não pais: “Deixarmos tudo resolvido aos nossos filhos, morrer tranquilo é isso”.
Em contraposição, viver intranquilo é a vocação primeira de qualquer escritor que entende a escrita como uma forma de se jogar e de se colocar em perigo, de pesquisar, sem cobardia, os temas que interessam. É o que faz Vilas, poeta, ficcionista, ensaísta, colaborador na imprensa (tem coluna semanal no El País).
Numa conversa com o autor, confinado na sua casa em Madrid, diz ao que vem neste volume: “Escrevi, encerrando um ciclo, sobre a alegria conquistada depois da dor”. O sentimento não é oferecido em vales de supermercado. “Exige uma superação. Uma disposição de ânimo e de vontade”. Os próprios pais, sobre os quais se demorou dolorosamente num livro de 400 páginas, mantendo-se fantasmas, ganharam outra coloração. Excerto do livro editado por estes dias de desencarceramento pela Alfaguara:
“Transformaram-se em beleza, e eu assisti a esse prodígio. E não posso estar mais agradecido à vida, porque vocês agora são beleza e alegria”.
Vilas já não se apresenta como filho. “Neste livro sou o pai”. O pai de dois jovens adultos, com os quais continua a não ser fácil comunicar. “Mando mensagem a um deles e este nunca responde”. Ainda assim o pai insiste. Fica dessa procura insistente uma frase inesquecível: “A condição de pai é a de mendigo do amor”. Apesar de tudo, eles estão presentes, são elevados, viajam com ele, são procurados (mesmo que por mensagens de WhatsApp sem resposta). O escritor aragonês não segue, pois, tão solitário como no volume anterior. Agora está acompanhado, presencial ou sentimentalmente, pela descendência e pela mulher, que acompanhou até aos EUA, onde viveu durante uma temporada. Ao seu casamento só faltou um dado: a presença dos pais. “Um dos grandes problemas que tenho com a Mo é os meus pais não a terem conhecido”. Afinal nem todas as dores ficaram resolvidas no livro Em Tudo Havia Beleza. E isso, sabe, faz parte da condição humana: não conseguir sarar todos os golpes.
Há várias palavras elementares que ficam da leitura de E, de repente, a alegria. Nenhuma delas é cinismo. O mundo tem o copo cheio de acrimónia e pose. Corajoso é aquele que nomeia tudo o que qualquer cínico quer e mete debaixo do tapete quando chega um convidado: felicidade. Retomo: um dos termos fundamentais, aqui, é agradecimento. Apesar do fardo, do caos, dos abismos, da consciência, segundo defende, de que a alma humana não devia ter descido à Terra, da evidência de que existir é acumular “tempo e enigmáticos adeuses”, há que agradecer a possibilidade de contemplar. “É grátis”, refere com humor. “Olhar, por exemplo, a luz do sol e as árvores. É um espectáculo de beleza”.
No livro, páginas 20 e 21, o elenco é mais completo:
“Como não ser viciado na vida, na contemplação do amor, na contemplação da comida, na contemplação do Inverno, do Verão, da Primavera, do Outono? Como não ser viciado no vento e na carne do vento?”.
Se a capa da edição portuguesa é o desenho de um homem a ver uma criança a correr na água, a cada da edição espanhola é a imagem de um homem confortavelmente sentado diante de um mar azul claro. Completam-se na revelação do que se pode encontrar ao longo dos capítulos.
Não se pense que tudo é descoberto de um modo inequívoco, em jeito de receita. Esta prosa é uma permanente investigação, às vezes remoída. Daí que contenha tudo o que uma busca tem. Inclusive algumas (assumidas) contradições. Alguns avanços e recuos. O nítido entusiasmo de quem encontrou uma formulação original para o que quer dizer. É claro que o talento lírico está alastrado na forma como o texto se prolonga, se estende, se transforma em aforismo. Existem referências a outros autores, como Kafka.
Declara: “Tenho a ideia de que um escritor é aquele que inventa uma religião e Kafka fê-lo”. A assumida dimensão mística de Vilas é dos pontos do livro. Uma mística sem Deus mas com a convicção de que a existência é mistério.
Manuel Vilas mediu a dor humana com palavras incertas e certeiras
O capitalismo, a demanda pela sucesso leviano, pelo reconhecimento facebookiano, são questionados e apresentados como antónimos de uma simplicidade essencial. As desigualdades económicas são lembradas. Vilas não se esquece de que veio de uma família pobre. E, no seu resguardo à conta de uma pandemia demoníaca para o seu país, faz, de passagem, uma reflexão sobre o estado da Europa. “É preciso que a União Europeia não prefira as empresas ao investimento na área da saúde”. E recomenda para estes tempos o romance Os Miseráveis, de Victor Hugo, um hino literário à força de vontade.
Mais uma vez, o leitor, aquele que já se apercebeu de que o sarcasmo é um infecundo disfarce, sai deste livro feito de penumbras e claridades com a vontade de valorizar mais a vida. De ligar aos seus. De atender às nuvens pela manhã. De comprazer-se com um prato. De provar as pequenas e significativas felicidades que nos fogem e que, enquanto é tempo, precisam de ser agarradas.
Nuno Costa Santos é escritor