Nos claustros do Mosteiro, o cardeal D. José Tolentino de Mendonça, presidente da Comissão Organizadora do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, quis ser “mais um entre os 10 milhões de portugueses” e evocou o poeta Camões por ter oferecido o “mais extraordinário mapa mental do Portugal do seu tempo”, assim como a sua obra poética épica, os Lusíadas, que levou os portugueses de “mar até à Índia e por terra até longe”. E dessa viagem, conclui Tolentino Mendonça, “Camões desconfinou Portugal”. Mas desconfinar, explicou ainda, não é simplesmente voltar a habitar o espaço, “é habitá-lo plenamente”. “Poder modelá-lo de forma criativa, com forças e intensidade novas. Sentir-se protagonista de um projeto mais amplo que a todos diz respeito”.

Na linguagem poética que o caracteriza, Tolentino Mendonça falou das múltiplas mudanças que a sociedade atravessa, mas onde há sempre uma luz.  “Numa estação de tetos baixos, Camões é uma inspiração para sonhar sonhos grandes”.

Idosos são “mediadores de vida para as novas gerações”

Num dia 10 de Junho atípico, que acontece em plena pandemia provocada pela Covid-19, o cardeal e poeta madeirense avisou que “não há viagens sem tempestades”, tal como também não há “super países nem existem super homens”. E quis refletir sobre a situação dos idosos, a quem chamou as principais vítimas da pandemia, não só porque o seu quadro clínico os coloca em risco, mas porque “socialmente estão transformados em população de risco que não queremos ver, mais sós, mais pobres, remetidos para precários contextos de institucionalização, vendo a sua função humana esquecida e desvalorizada”.

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Tolentino Mendonça, que ao longo de todo o discurso se serviu da metáfora raízes para elevar o espírito de comunidade, apelou à sociedade para rejeitar a tese que “uma esperança de vida mais breve determina uma diminuição do seu valor intrínseco”. “A vida é um valor sem variações”, disse.

E porque acredita que os mais velhos devem atuar como “mediadores de vida para as novas gerações”, citou o seu testemunho pessoal, recordando a avó materna analfabeta, que foi a sua primeira biblioteca. “Em criança, pensava que as histórias que ela contava ou as cantilenas com que entretinha os netos, eram coisas de circunstância, inventadas por ela”. Só depois, mais tarde na vida, descobriu a importância dos tesouros da cultura no seu desenvolvimento pessoal. E por isso frisa, “a comunidade devia ser a primeira interessada em beneficiar do contributo dos idosos”.

Jovens “adiam os legítimos sonhos de autonomia pessoal”

Mas porque num país “sem compaixão e sentido de fraternidade não há comunidade presente ou futura”, apenas se “fortalecem os muros”, alienando as possibilidades de criar raízes, Tolentino Mendonça quis olhar, também, para outra geração mais vulnerável.
A dos jovens adultos abaixo dos 35 anos. “Geração que numa década vê-se abater sobre as suas aspirações uma segunda crise económica grave”. Jovens adultos com uma alta qualificação escolar, remetidos para uma “experiência interminável de trabalho precário ou de atividades informais”, que os obrigam sucessivamente a “adiar os legítimos sonhos de autonomia pessoal, de criar laços familiares, de ter filhos”, referiu o cardeal

E se os idosos e jovens adultos foram as principais vítimas da pandemia, como disse Tolentino Mendonça, o surto de Covid-19 também pode ser um sinal humanitário importante. E salientou as medidas de regularização dos imigrantes com pedidos de autorização de residência pendentes no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. “O desafio da integração é essencial quando se trata de ajudar a criar raízes”.

E as raízes, a metáfora que acompanhou todo o seu raciocínio no 10 de junho, “não se improvisam”. “As raízes são lentas, requerem tempo, oportunidades e esperança”. E, também, políticas apropriadas. “A comunidade não se reforça esquecendo as periferias mas fazendo delas o motor da sua própria coesão”.

Nas palavras do cardeal, a pandemia veio, ainda, expor a urgência de um novo pacto ambiental, porque não se pode continuar a chamar progresso aquilo que, “para as frágeis condições do planeta ou para a existência dos outros seres vivos, tem sido uma evidente regressão”. “Precisamos de construir uma ecologia comum, e em vez de senhores despóticos apareçamos como cuidadores sensatos, praticando uma ética da criação que tenha expressão efetiva nos tratados transnacionais mas também nos nossos estilos de vida, nas escolhas  e nas expressões mais domésticas do nosso quotidiano”.

“Uma grande viagem é como um grande amor”

E se o seu discurso do 10 de junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, começou com a evocação de Camões, é ao poeta que Tolentino Mendonça regressa por ter representado o próprio país como uma “viagem”.

Portugal é uma viagem que fazemos juntos há quase nove séculos e o bem maior que esta nos tem dado é a possibilidade de ser em comum”. E nesta caminhada, todos são necessários e co-responsáveis.

Uma grande viagem é como um grande amor, refere o poeta madeirense. Para o fecho do discurso, escolheu Maria Gabriela LLansol, escritora portuguesa de ascendência espanhola, nascida no ano de 1931, e uma das “vozes límpidas da nossa contemporaneidade”, como disse Tolentino Mendonça. Uma viagem assim, “não se esgota nem cancela na fugaz temporalidade da história, mas constitui antes uma espécie de rasto do fulgor que exprime a ardente natureza do sentido que juntos interrogamos”.