Título: A Melhor Máquina Viva
Autor: José Gardeazabal
Editora: Companhia das Letras
Dizem que a melhor maneira de conhecer uma dada realidade é vivendo-a. Talvez que a melhor maneira de um ator encarnar a sua personagem seja vivendo essa personagem fora do palco. A verdade é que experienciar algo, por oposição a ler sobre algo, confere uma autoridade de que poucos duvidarão. Será então que é preciso viver em pobreza para se perceber melhor a vida, o que significa viver? É este o ponto de partida do livro de José Gardeazabal.
José Gardeazabal, pseudónimo literário de José Tavares, é um dos escritores emergentes da última década. Nasceu em Lisboa, onde vive, mas a sua vida profissional e académica levam-no a várias cidades, como Luanda, Aveiro, Boston e Los Angeles. Em 2016 edita o seu livro de poesia, história do século vinte, que venceu o Prémio INCM/Vasco Graça Moura, e em 2018 é lançado o seu primeiro romance, Meio homem metade baleia, obra finalista do Prémio Oceanos, um dos mais importantes prémios literários de língua portuguesa. Para além destes, Gardeazabal ainda editou mais dois livros, Dicionário de ideias feitas em literatura, uma coletânea de prosa curta, e Trilogia do olhar, que reúne três peças de teatro.
A obra editada este ano, A melhor máquina viva, é o primeiro livro da Trilogia dos Pares, e coloca a bitola alta para os próximos volumes, não só no que toca à abrangência dos temas como à qualidade da escrita. O nosso herói, ou anti-herói, é Kopf, um jovem que decide tornar-se pobre durante um ano, uma decisão pouco ou nada relacionada com abnegação ou altruísmo. Esta reclusão voluntária no mundo da pobreza tem o duplo objetivo de, por um lado, melhorar a sua capacidade de escrever literatura e, por outro, de fugir do seu passado, para nós incerto. Estes dois objetivos intercalam-se e complementam-se ao longo da obra, pois quando não estamos a acompanhar Kopf nas suas aventuras com os outros pobres, lemos a escrita do próprio, que relembra ou reinventa o seu passado.
No campo diametralmente oposto a Kopf, pobre voluntário, está Eeva, capitalista e herdeira, involuntária, de um matadouro, facto irónico devido à sua aversão a matar animais. Também o seu passado é envolto em mistério, sabendo o leitor apenas que uma grande desgraça terá ocorrido. É no constante choque entre estes dois pólos que a narrativa ganha tensão, libertada aquando do encontro entre os dois personagens, que só acontecerá próximo do fim.
A completar este quadro estão os companheiros pobres de Kopf. Estes acompanham-no ao longo da sua reclusão na pobreza, atuando muitas vezes como as possíveis personalidades do jovem, vocalizando as suas várias sensibilidades, idiossincrasias e opiniões. O estado de pobreza confere-lhes uma ultra consciência relativamente à realidade, pois por serem pobres são invisíveis e encontram-se fora dela.
Através da boca dos pobres Gardeazabal faz uma análise social e de comportamentos, despindo o mundo de qualquer filtro ou roupagem, pondo-o a nu, vulnerável. No entanto não o faz de forma grotesca ou cínica, limita-se a apontar para a verdade clara perante todos, mas que todos, sem serem os pobres, insistem em não ver. Ser pobre é conseguir atingir esta visão e não se deixar esmagar por ela, pois já não há mais nada a perder. Gardeazabal cria assim uma filosofia da pobreza, que passa também pela crítica ao capitalismo. Essa crítica é materializada no assalto que os pobres fazem ao matadouro de Eeva, símbolo de poder e opressão, do humano para com o animal, e do humano para com ele próprio.
É difícil, porém, separar neste livro o que é narração e o que são deambulações filosóficas. O concreto e o abstrato misturam-se, num contínuo sinuoso, no qual muitas vezes nos perdemos. Pensamento e acção são uma e a mesma coisa, e por isso a narrativa é feita freneticamente, com malabarismos e contorcionismos literários intricados. O absurdo é uma realidade constante, e que, quando esticado ao máximo, resulta no cómico.
Em A melhor máquina viva Gardeazabal abarca o mundo todo sem o tornar maior que a vida. O encontro final entre Kopf e Eeva representa esse mundo, dividido entre a pobreza e a abundância, sempre emparelhados, ainda que opostos. O desfecho final fica em suspenso, mas com uma nota de esperança, vinda de Eeva, “Gosto das coisas, gosto de ti, gosto do mundo”.