“Bully. Cobarde. Vítima”
Há um momento no documentário em que conseguimos dar o benefício da dúvida a Roy Cohn: o título. A partir daí, termina qualquer hipótese de empatia. Mesmo quando Trump se afasta dele ao saber-se que tem sida, porque é como se soubéssemos que Cohn faria exatamente o mesmo se fosse ao contrário – frutos da mesma árvore. Porque é que a realizadora Ivy Meeropol, neta do casal de judeus condenado à morte, acusado por Cohn de ter passado à União Soviética os planos da bomba atómica, sequer lhe dá essa oportunidade, não sabemos. Talvez pela humanidade que Cohn nunca teve, ou para nos avisar de que há poderes ainda maiores, e que aliás intuímos ao longo do filme. E que, ao contrário de Cohn, que morreu há mais de 30 anos, ainda não prescreveram. Bem pelo contrário.
O novo documentário da HBO é, como o extraordinário “O Advogado do Terror”, de Barbet Schroeder, há alguns anos, um daqueles objetos que nos lembra que os verdadeiros protagonistas da História nos passam muitas vezes despercebidos. Muito mais despercebidos do que a alta consideração em que temos a nossa perspicácia gostaria de pensar. Não é que Cohn já não tivesse sido estudado, mas quantos, fora de Nova Iorque, terão percebido que a personagem de Al Pacino em “Angels in America” era real, e não somente um pérfido boneco saído da liberdade criativa de Tony Kushner ou dos responsáveis pela adaptação da peça vencedora do Pulitzer à televisão?
[veja aqui o trailer de “Bully. Coward. Victim. The Story of Roy Cohn”:]
“Bully. Coward. Victim. The Story of Roy Cohn” não é um ajuste de contas. Parte de um ângulo bem pessoal: a filmagem doméstica da realizadora, então apenas uma criança, olhando as fotos da família e contando-nos a pouca idade que pai e tio tinham quando o governo americano lhes matou os pais, acusados de um crime terrível. Vai regressando às imagens dos protestos do pai e do tio com vista à reabertura do processo (e até de um momento de confrontação direta com Roy Cohn), até às conversas, hoje, com o pai, Michael Meeropol, sobre o papel do advogado no “caso dos espiões atómicos”. Mas é, fundamentalmente, um objeto aberto ao presente, que documenta ligações entre factos e figuras que talvez não associássemos, para nos deixar, no final, com uma imagem ainda pouco mais perturbadora dos dias que vivemos.
Roy Cohn foi a figura rastejante e escorregadia que se moveu pelos corredores do poder norte-americano durante três décadas. Através de muito material de arquivo, nomeadamente as gravações áudio de conversas com o jornalista Peter Manso, Meeropol vai unindo os pontos no trajeto de uma figura que até fisicamente tem qualquer coisa de lagarto, mas pela qual a câmara não deixa de sentir um certo fascínio.
Cohn saltou para a ribalta como conselheiro do infame senador McCarthy, e foi no contexto da grande caça às bruxas da época que processou Julius e Ethel Rosenberg e pressionou testemunhas a sustentarem a acusação. Embora nada comprove o crime capital de que eram acusados – alta traição por terem passado os planos da Bomba H à U.R.S.S. e, com isso, terem colocado os Estados Unidos sob a espada do apocalipse nuclear – Julius seria, efetivamente, um espião ao serviço dos comunistas e Ethel, a sua mulher, uma inocente de cuja vida Cohn dispôs apenas para tentar pressionar Julius a revelar o nome dos verdadeiros traidores.
O episódio é revelador da qualidade humana do protagonista. Sem sinal de remorso (ou qualquer outro sentimento, a propósito), Cohn sobreviveu sem dificuldades ao fim do mccarthismo, como advogado de alguns dos mais poderosos chefes da Mafia da costa leste, trabalhando na eleição de Reagan (pobre Ronald, tão distante de Donald, mas metido no mesmo filme…) e tornando-se nos mais próximos amigos e mentores de um então ainda jovem Donald J. Trump, que Cohn descreve como “a coisa mais parecida que já viu com um génio” (tirem as vossas ilações sobre quem seria o génio aqui). Entre outros feitos, Cohn pressionou a nomeação de Elizabeth Trump, irmã mais velha do atual Presidente dos Estados Unidos, para juíza do Tribunal Distrital de New Jersey, terá facilitado a construção da Trump Tower, primeiro edifício totalmente construído em cimento em Nova Iorque, sem aço, precisamente numa época em que as cimenteiras se encontravam em greve e o único cimento disponível era controlado pela Máfia, e propôs o próprio Donald para negociador norte-americano na corrida com a União Soviética ao armamento nuclear (enquanto “candidato” à função, Trump andou em operação de charme em Moscovo em 1987, pormenor capaz de colocar em sentido o mais paternalista dos detratores e até dos simpatizantes da figura).
Mas esta história vai da Casa Branca ao Studio 54. Cohn movimentava-se com o mesmo à vontade em ambos. Foi amigo de Andy Warhol e partilhou casa com Norman Mailler. Era um colecionador de arte e as suas festas de anos algumas das mais badaladas entre a nata artística, e não só empresarial, de Manhattan. E foi ainda um homossexual em segredo, que politicamente se opôs aos direitos dos homossexuais.
“Bully. Coward. Victim. The Story of Roy Cohn” é uma proposta muito pedagógica para este fim-de-semana. Faz-nos sentir que ficamos a saber mais sobre a década que vivemos do que sobre as de 50, 60, 70 e 80, que retrata. Faz-nos também pensar o quanto Cohn lembra, em momentos e por razões diferentes, pelo menos três ou quatro políticos portugueses (uma pista para o mais fácil: a relação que tem com os empréstimos). Mas porventura uma questão mais interessante será esta: quando teremos em Portugal a independência suficiente para retratar e levar ao grande público a vida e obra dos advogados do regime?
Alexandre Borges é escritor e argumentista