O Governo aprovou esta 5.ª feira em Conselho de Ministros a Estratégia Nacional Contra a Corrupção proposta pela ministra Francisca Van Dunem. O aprofundamento dos mecanismos de colaboração entre o Ministério Público e arguidos que já existem na lei, a proteção de denunciantes, o combate aos mega processos, a obrigatoriedade das entidades privadas de grande dimensão terem planos de prevenção contra a corrupção e o reforço das penas acessórias do exercício de funções públicas e políticas — são algumas das ideias que, tal como o Observador tinha antecipado a 30 de julho, o Executivo liderado por António Costa aprovou.

Seguir-se-á agora um período de discussão pública que submeterá o plano do Governo ao escrutínio dos diferentes agentes da Justiça e da Opinião Pública, sendo expectável que a ministra da Justiça envie as primeiras propostas de alteração de lei para a Assembleia da República no final de outubro. Para que as ideias de Van Dunem sejam aplicadas, será necessário que o Parlamento aprove alterações cirúrgicas no Código Penal, Código Processo Penal, lei da responsabilidade dos titulares cargos públicos e políticos, entre outras normas que deverão ser alteradas.

Corrupção. O que propõe o novo plano para impedir a perda anual de 18,2 mil milhões de euros?

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Em conferência de imprensa realizada no Ministério da Justiça, Francisca Van Dunem afirmou que o Governo pretende vai apostar na prevenção —  “a prevenção é a chave para solucionar o problema, porque os sistemas repressivos não resolvem tudo”, disse a ministra. Assim, vão existir ações de formação nas escolas, reforçando-se o papel das instituições de ensino na introdução de valores que repudiem a corrupção. Por outro lado, vão ser reforçadas as ações de formação junto da administração pública.

Por outro lado, o setor público e o setor privado vão ter obrigações iguais no que à prevenção diz respeito. Ou seja, as empresas de grande dimensão serão obrigadas a ter, tais como as empresas públicas, mapas de risco de corrupção, planos de prevenção de corrupção e responsáveis pela aplicação desses programas. O incumprimento dará lugar a contra-ordenações que serão aplicadas por um entidade que terá esse poder.

Já no campo da repressão, avançam as medidas de justiça negociada, que já existem na atual lei processual penal mas sem grande aplicação. O Governo vai propor que sejam possíveis acordos entre o Ministério Público e os arguidos sob a pena aplicável, desde que exista confissão integral e sem reservas. Nesse caso, será possível ao MP negociar a pena com dispensa de produção da prova, fazendo uma proposta concreta ao juiz de julgamento. Van Dunem destacou que será possível a “celebração de acordos sobre a pena aplicável, durante o julgamento, com base na confissão livre e sem reservas dos factos imputados ao arguido, independentemente da natureza ou da gravidade do crime.”

A ministra Francisca Van Dunem quer que essas medidas “sejam aplicadas na prática e auxiliem a investigação”. Contudo, enfatizou a ministra da Justiça, sem “pôr em causa os direitos de defesa e a dimensão humanista do nosso processo penal.” E assegurou: “não está em causa nenhum sistema de delação premiada”.

Finalmente, a ministra da Justiça realçou que o Executivo defende o reforço da “pena acessória de proibição do exercício de funções públicas, aplicada a titulares de cargos públicos que cometem crimes de média ou alta gravidade, prevendo-se prazos mais longos de proibição do exercício de funções”. Pretende-se igualmente que este reforço seja extensível aos “titulares de cargos políticos.” O mesmo acontece com o setor privado, no qual o Governo também pretende aplicar períodos de inibição de exercício de funções de gerência ou administração de sociedades comerciais.

Justiça negociada avança

Tal como o Observador antecipou a 30 de julho, a primeira grande alteração da Estratégia Nacional Contra a Corrupção será a seguinte:

Alteração do 374.º – B do Código Penal e de outros artigos em que se encontram previstos os institutos da dispensa de pena e da atenuação da pena, em matéria de corrupção, uniformizando os regimes. A lei impõe atualmente um prazo de 30 dias após a consumação do crime para ser feita denúncia, de forma a que o denunciante seja beneficiado com dispensa ou atenuação especial de pena. O grupo de trabalho propõe que o prazo seja eliminado de forma a permitir que um suspeito ou arguido possa colaborar com o Ministério Público (MP) e denunciar o crime que presenciou ou praticou, recebendo em troca uma supensão ou atenuação especial de pena que já estão previstas na lei.

Pressupõe-se assim a colaboração na descoberta da verdade material, eliminando-se a possibilidade de dispensa de pena associada à mera omissão da prática do ato ilícito. O mesmo espírito verifica-se com as alterações relacionadas com atenuação especial da pena.

Se não houver nenhuma alteração na proposta que será submetida ao Parlamento, e se for aprovada, a nova redação da lei vai balizar de forma rígida os benefícios que poderão ser atribuídos aos suspeitos ou arguidos que queiram colaborar com a Justiça.

Eis as principais regras que se propõem:

A suspensão da pena só poderá ser concedida a quem não cometer o ato criminoso e a quem não beneficiou de vantagem económica por via da prática do crime. Neste último caso, se a pessoa que quiser colaborar tiver recolhido tal vantagem, desde que restitua o produto do crime poderá beneficiar da suspensão da pena.

Já para os arguidos que tiverem praticado efetivamente o crime que querem denunciar, a lei só deverá permitir a atenuação especial da pena — e não a suspensão.

O mesmo acontece quando a respetiva denúncia estiver relacionada com um inquérito em curso. Ou seja, denúncias apresentadas depois das investigações se iniciarem só poderão ser beneficiadas com atenuação especial da pena.

Estas regras rígidas pretendem precisamente evitar algo que é proibido pela lei portuguesa: o negócio jurídico. Em linguagem mais simples, pretendem impedir que o Ministério Público (MP) possa negociar com um suspeito ou arguido a atribuição de determinados benefícios em função da denúncia ou confissão.

Na prática, esta nova redação da lei permitirá ao MP fazer o seguinte:

Perante uma denúncia ou confissão de um suspeito ou arguido, o MP proporá no final do despacho de acusação a suspensão ou atenuação de pena para quem tiver ajudado na descoberta da verdade material com prova concreta;

Essa denúncia ou confissão terá de ser confirmada e validada em sede de julgamento perante um juiz ou coletivo de juízes;

A decisão final sobre suspensão ou atenuação de pena pertence sempre ao juiz ou ao coletivo de juízes de julgamento. Contudo, ao tribunal de julgamento apenas será permitido verificar se os requisitos para tais acordos impostos pela lei foram cumpridos ou não. Só em caso de não cumprimento, é que o tribunal poderá recusar a homologação.

Esta alteração ao artigo 374-B º do Código Penal está diretamente ligada a outra mudança cirúrgica que o grupo de trabalho recomenda que se faça ao art. 344. º do Código de Processo Penal relacionado com as confissões em julgamento. Eis o desenho geral da medida:

A lei já permite que a confissão integral e sem reservas em julgamento possa beneficiar de dispensa ou atenuação especial da pena. Mas o juiz tem um poder discricionário sobre essa medida, podendo ou não aplicá-la.

Pretende-se agora retirar tal poder discricionário aos aos juízes de julgamento. Ou seja, o tribunal de julgamento será obrigado a aplicar a dispensa ou atenuação da pena nos casos de confissão integral e sem reservas dos réus — e desde que se verifique a devolução ao Estado do produto do crime. Sem essa restituição, o réu não poderá ter nenhum benefício.

Lei portuguesa vai defender denunciantes

O chamado regime whistleblower será finalmente aplicado por via da União Europeia. Ou seja, o regime de proteção de denunciantes da União Europeia será finalmente transposto para a lei portuguesa e visa assegurar proteção para os denunciantes que estejam dentro de organizações criminosas ou de outro tipo de organização (entidade pública, empresas, etc.) e que desejem colaborar com a Justiça na descoberta da verdade material sobre determinado ato ilícito.

Do ponto de vista técnico, Rui Pinto não é um whistleblowerResta existirão algumas regras que possam beneficiar o ex-hacker, tendo em conta que a lei não pode ter aplicação retroativa.

O objetivo de todo este esforço de envolver o setor privado no combate à corrupção é só um: combate o aumento dos custos de contexto do tecido empresarial. Quanto mais corrupção existir, maior é o custo final para as empresas privadas e maior é a fatura que os contribuintes pagarão. No caso do Estado, cerca de 18,2 mil milhões de euros anuais — o equivalente a cerca de 7,9 % do PIB de 2018. Este foi o valor encontrado pelo grupo de trabalho que preparou a Estratégia Nacional Contra a Corrupção hoje aprovada.

Combate aos mega-processos

Os especialistas aconselharam a ministra Francisca Van Dunem a promover uma alteração cirúrgica no Código Penal de forma a fazer cessar a conexão de processos que permite ao Ministério Público promover a fusão de diversos inquéritos num só. Na prática, a lei deverá deixar claro que tal conexão de processos essa se a junção de inquéritos fazer retardar a conclusão das investigações. Tal alteração poderá reforçar os poderes hierárquicos dos responsáveis do Ministério Público para impedir que os procuradores titulares dos inquéritos os possam construir.

Um exemplo prático para melhor compreensão desta alteração: a Operação Marquês. Trata-se de um inquérito que nasceu da fusão de outros processos, sendo que se investigaram diferentes realidades que têm conexão entre si. Por exemplo, Ricardo Salgado foi acusado de corromper o ex-primeiro-ministro José Sócrates e Henrique Granadeiro e Zeinal Bava (ex-líderes da Portugal Telecom) por razões diferentes. A alteração legislativa pretende promover que o MP pudesse fazer duas acusações consoante os crimes de corrupção ativa imputados a Salgado.

Outro exemplo: José Sócrates foi acusado de corrupção passiva por alegadamente ter beneficiado três grupos económicos (Grupo Espírito Santo, Grupo Lena e Grupo Vale do Lobo), logo o MP poderia fazer três acusações e não uma só.

Privados obrigados a ter planos de prevenção e canais de comunicação para denúncia de irregularidades

A prevenção é uma parte fundamental da Estratégia Nacional Contra a Corrupção que a ministra Francisca Van Dunem irá propor ao Conselho de Ministros. Para tal, deverá ser criado um Regime Jurídico de Prevenção da Corrupção que terá várias inovações.

A primeira prende-se com uma equiparação entre o setor público e o setor privado no que diz respeito à obrigatoriedade de ter um plano de prevenção contra a corrupção. Desde 2009 que todos os organismos públicos são obrigados a ter tais planos e essa obrigatoriedade deverá ser agora estendida ao setor privado, mas com várias nuances:

A obrigatoriedade aplica-se apenas a empresas com grande dimensão, excluindo-se as pequenas e médias empresas. As regras que permitirão classificar determinada empresa com de grande dimensão ainda estão a ser afinadas;

As empresas que sejam abrangidas por tal obrigatoriedade, terão de nomear um responsável pela aplicação do plano de prevenção de corrupção;

No caso de incumprimento, serão aplicadas coimas sancionatórias e ficarão excluídas automaticamente de apoios públicos ou de contratos com o Estado.

Já os responsáveis dos organismos públicos que estão obrigados a aplicar os planos de prevenção de corrupção apenas serão sancionados disciplinarmente.

O setor privado deverá ficar satisfeito com um benefício que este novo regime deverá trazer: a possibilidade de isenção de responsabilidade penal das pessoas coletivas. Ou seja, caso fique demonstrado que os órgãos sociais de uma empresa tudo fizeram para que determinado crime não fosse praticado por um seu representante (presidente, administrador ou funcionário), então a sociedade não poderá ser constituída arguida e acusada pelo MP. Um exemplo prático: a EDP poderia eventualmente beneficiar desta isenção no caso das rendas excessivas se a mesma já estivesse em vigor e, obviamente, se ficasse comprovado que tudo tinha feito para que António Mexia e João Manso Neto não tivessem alegadamente praticado os crimes que o MP lhes imputa.