Das funções à estrutura, a pele não é apenas o maior órgão do corpo humano — a complexidade de questões que levanta mostra-nos que ainda há muito terreno por apalpar, sobre aquilo que se desenrola dentro e fora de cada um de nós. Seja quando apontamos para as novidades que o futuro promete trazer como para as crenças que se perdem no tempo. Não se pode lavar o cabelo todos os dias? “Claro que pode!”; se dormirmos com a cabeça molhada as raízes do cabelo apodrecem? “Gostava que um dia me mostrassem o que é uma raiz podre!”; se limparmos a pele com frequência ela produz mais óleo? “Até hoje só se provou o contrário…”
É no endereço A Pele que Habito, originalmente lançado em 2015, que Marta Ferreira vai testando produtos, desfazendo mitos como os anteriores e respondendo às dúvidas sobre um universo raramente consensual. Agora numa versão disponível nas estantes, “O Livro da Pele”, a farmacêutica, mestre em Tecnologia Farmacêutica e pós-graduada em Cosmetologia Avançada, explora a ciência por detrás dos nossos cuidados com pelo, unhas e cabelo e promete orientar as escolhas dos consumidores mais à deriva. Das primeiras preocupações ao aliado protetor solar, das debilidades da indústria à multiplicidade de novas ofertas, sem esquecer a forma como a pandemia veio mexer com o mercado da cosmética, folheamos estes e outros conceitos.
Comecemos pelas últimas páginas, nas quais escreve que “o que hoje é hipótese amanhã pode ser verdade”. Quão informados estamos sobre a nossa pele? Diria que é mais o que já sabemos ou o que nos falta a saber?
Não imagino o quanto nos falta saber, e muito menos aquilo que será reformulado com os avanços da ciência. Mas quando o assunto é pele, podemos dizer com alguma confiança que já sabemos várias coisas. Conhecemos grande parte da sua constituição e funcionamento e sabemos que a exposição solar, o clima, a poluição e os nossos hábitos podem afetar a sua saúde e aparência de forma significativa. Contudo, e sempre que descobrimos algo novo surgem uma série de novas perguntas. É nesse sentido que a investigação continua.
Possivelmente muitos ainda estarão a ler-nos na praia. Insiste muito na questão da radiação solar e do efeito nocivo do sol na nossa pele, um dos maiores cúmplices do envelhecimento. Continuamos a desvalorizar esta preocupação? Vivemos assustados com ameaças como a Covid-19 mas arriscamos passar horas a fim ao sol sem protetor solar?
Parece-me que as pessoas têm cada vez mais cuidado, nomeadamente na prevenção do cancro de pele e dos sinais do envelhecimento, além da queimadura solar. Acredito que isto seja fruto das campanhas de sensibilização e do acesso facilitado a informação. Contudo, quando vamos à praia ainda vemos alguns comportamentos de risco face à exposição solar, seja através da exposição a horas de maior intensidade de radiação, ou da não utilização de protetor que, nos dias que correm, não tem que ser gorduroso nem deixar a pele branca.
O facto de os efeitos na pele serem quase sempre a longo prazo condiciona esta eventual desvalorização das medidas preventivas? Defende que devemos usar protetor em todas as estações e mesmo no contexto diário da cidade.
Há alguma dificuldade em gerir o risco, palavra que traduz a probabilidade de um perigo acontecer, quando as consequências de determinadas atitudes não são imediatas… e sobretudo se gostamos de ter uma pele bronzeada. Mas é importante ter em mente que o cancro de pele, e em especial o melanoma, que está associado a este tipo de exposição solar intensa, pode ser muito grave. Além disso, quem valoriza o aspeto da sua pele certamente verá mais vantagens a longo prazo ao proteger-se do sol, do que através da utilização de cosméticos dirigidos para a prevenção e correção dos sinais da idade. O protetor solar é provavelmente o nosso melhor anti-rugas?
Provavelmente uma das grandes dúvidas é que medidas adotar em cada fase da vida, mas para este caso é relativamente simples?
Os cuidados com a exposição solar devem ser uma prioridade desde o primeiro dia de vida. De uma forma geral, não é recomendado levar crianças à praia antes dos 6-12 meses, e até aos 3 anos é desaconselhada a exposição solar direta e sem roupa. Ao longo da vida, os principais conselhos a adotar são os nossos conhecidos: evitar a exposição solar direta entre as 12h e as 16h, utilizar sempre um protetor solar durante toda a exposição renovando a sua aplicação a cada 2h ou após as idas ao banho, e evitar solários.
Admite que “às vezes só procuramos texturas deliciosas. Os cosmético também têm uma função decorativa e sensorial e não há mal nisso.” Como conciliar este vertente mais estética com as preocupações de saúde, sobretudo numa era em que a beleza nos é vendida todos os dias nas redes sociais, muitas vezes por protagonistas sem a devida formação?
Os produtos cosméticos são, acima de tudo, produtos de saúde. Eles podem contribuir para a saúde humana na sua componente física, por exemplo através dos cuidados com a saúde oral ou da higiene do corpo, como a recente pandemia tão bem nos ensinou. Mas os cosméticos contribuem também de forma muito significativa para a nossa saúde psicológica e social, ao melhorar a nossa autoestima e qualidade de vida através das texturas, fragrâncias, ou até das cores e efeitos da maquilhagem. Por vezes há pessoas com preocupações de saúde específicas que necessitam de cosméticos adaptados às suas necessidades. Mas de uma forma geral, todas as pessoas podem usar os cosméticos presentes no mercado sem qualquer preocupação de segurança, já que estes produtos são seguros por definição (e obrigação legal).
Fala na questão da segurança, outro ponto tão decisivo e sensível nesta área, e que tem sido cada vez mais questionada. Diz que a generalidade do que encontramos no mercado é seguro. Em que medida devemos estar, ou não, alarmados?
Quando se diz que os cosméticos são seguros não estamos a repetir um chavão. Esta afirmação tem consequências práticas. Antes de qualquer produto cosmético ser colocado no mercado da União Europeia é obrigatório que seja elaborado um relatório de segurança, que inclui a apreciação do produto por avaliador devidamente credenciado para o efeito tendo em conta a sua composição, material de embalagem e restantes características do produto em questão. Além disso, os produtos cosméticos são obrigatoriamente produzidos em instalações cuja higiene, organização, pessoal, procedimentos e equipamento estão devidamente vocacionados para produzir produtos cosméticos.
Entretanto, e muitas vezes por comparação, entraram em jogo inúmeras alternativas que se afirmam como orgânicas, bio, mais sustentáveis e seguras. Que avaliação faz deste tipo de opções?
Não há nada nos produtos “orgânicos” ou “naturais” que os torne mais seguros. Aliás, grande parte das substâncias de maior potencial alergénico, e muitos dos mais poderosos venenos que conhecemos hoje são naturais! A segurança de uma substância relaciona-se com as suas características químicas (porque até o natural é químico) e capacidade de interagir com o nosso corpo. Não com a sua origem. Assim, aquilo que nos deve alarmar não são os produtos legítimos e que encontramos em supermercados, perfumarias ou farmácias, porque estes cumprem os requisitos legais e são igualmente seguros. Devemos sim estar atentos aos produtos “caseiros”, contrafeitos, com rotulagem ou embalagem demasiado simplista e sem qualquer menção à entidade responsável pela sua comercialização, e mais atentos ainda àqueles produtos que não disponibilizam rotulagem ou embalagem alguma. Nestes casos, provavelmente o produto não está legalizado, e por isso a sua segurança não é conhecida.
Na cosmética falamos de uma indústria com um peso gigante e que, como aponta no livro, também tem os seus pontos fracos, nomeadamente ao nível da inclusão, ou falta dela, da forma como as novidades têm vindo a ser comunicadas década após década. Que desafios considera que sejam os maiores para este universo, sobretudo quando conceitos como sustentabilidade, diversidade, slow ageing, etc, estão na ordem do dia?
A indústria cosmética é muito escrutinada, e bem, já que tem um grande impacto económico, social e ambiental. Atualmente podemos encontrar desafios a todos esses níveis. Será interessante perceber como é que as marcas vão responder por exemplo à demanda dos consumidores por uma indústria mais sustentável, sem cair na tentação de fomentar o consumismo de produtos alternativos aos tradicionais. Também gostava de ver perdurar o esforço que algumas marcas têm feito no sentido de ilustrar a diversidade de idades, etnias e identidades de género quer na sua comunicação, quer na estrutura interna das empresas e até no racional para o desenvolvimento de novos produtos. Ainda há um longo caminho a percorrer, e temo que em algumas empresas estes movimentos se tratem apenas de encenações.
Nem de propósito, escreve que “nem tudo o que encontramos na prateleira vale o nosso dinheiro”. Quais são os maiores erros que cometemos neste capítulo? Ou os maiores engodos a que estamos sujeitos?
Acreditar que o mais barato é necessariamente pior, ou que os produtos baratos não são seguros. É verdade que a questão da qualidade, na ótica do consumidor, tem muito que se lhe diga. E há de facto consumidores que valorizam muito a experiência que um cosmético de luxo lhes proporciona. Mas tenho para mim que há muitos produtos económicos para os quais a esmagadora maioria dos consumidores não consegue encontrar diferenças significativas na sua qualidade quando comparados com produtos de gamas premium. Outro mito é que temos que comprar tudo de mesma marca, e preferencialmente usar a gama completa se queremos ver algum efeito! Isto pode não fazer sentido para todas as pessoas, e menos ainda se o uso de 3, 4 ou 5 produtos por dia não é algo que proporcione bem-estar ou prazer, e que possa constituir até uma fonte de ansiedade ou gerar um sentimento de culpa quando “furamos” a rotina.
Recorda que foi pelos cabelos que começou o seu interesse. Como é que o estudo da pele se tornou um caso sério de interesse e formação?
O meu interesse pelos cabelos começou na infância. Já na Faculdade de Farmácia encontrei várias disciplinas que abordam o estudo da pele, como tecido, mas também o desenvolvimento e aconselhamento de produtos cosméticos. Acho que ao longo desses anos me fui fascinando pela multiplicidade de funções que este órgão tem, pela sua complexidade, e pelos vários desafios que podemos encontrar no desenvolvimento mas também no aconselhamento de produtos cosméticos para as diferentes pessoas.
No seu blogue, A Pele que Habito, conjuga uma mostra de produtos que decide comprar com as ofertas das marcas. Como é gerido este equilíbrio? Que critérios segue a bem da transparência?
Antes de mais, tem que haver transparência. Tudo o que é oferecido é discriminado. Cabe ao leitor decidir quanto deve confiar na minha opinião, independentemente de eu achar que esta é ou não imparcial. Depois, aquilo que compro tem que ver com a sua adequação às minhas necessidades, mas também com a vontade de abordar determinado produto ou tecnologia inovadora no blogue.
Quais são as principais dúvidas dos leitores, sobretudo em termos de evolução do blogue? Que mitos persistem e que resposta lhe merecem?
No blogue comecei por explorar os produtos de que gostava e os temas relacionados com a pele de uma forma relativamente simples. Mas com os anos é inevitável que as pessoas nos confrontem com alguns mitos, e perante isso achei que fazia todo o sentido começar a esclarecer estas questões com base na evidência científica. É curioso verificar que os mitos que ouvimos hoje são provavelmente os mesmos do tempo das nossas avós: não se pode lavar o cabelo todos os dias (claro que pode!), se dormirmos com a cabeça molhada as raízes do cabelo apodrecem (gostava que um dia me mostrassem o que é uma raiz podre!), se limparmos a pele com frequência ela produz mais óleo (quando até hoje só se provou o contrário)…
Sente que a pandemia veio alterar hábitos de consumo nesta área de forma radical ou é apenas circunstancial? Quais as prioridades atualmente quando falamos de pele e cosmética?
A pandemia é circunstancial, e tenho muitas dúvidas de que algo que durará alguns anos tenha o poder de alterar radicalmente muitos dos hábitos que foram sendo instituídos ao longo de décadas. Mas no imediato verifico que há muitas pessoas que se queixam dos efeitos nocivos da lavagem repetida das mãos sobre a pele, o que as levou a usar mais hidratantes para as mãos, do uso diário de máscara, que em alguns casos levou ao aparecimento ou agravamento da acne, e da palidez da pele tanto tempo resguardada do sol.
E consequente aumento da procura de auto-bronzeadores, que também diz que são perfeitamente seguros. Aborda o mito da utilização de diferentes cremes segundo as horas. Estamos muitas vezes a consumir produtos desnecessários ou em excesso? Ou sobretudo a acreditar em promessas vãs?
Os cremes direcionados para alturas específicas, geralmente dia e noite, podem fazer sentido. Seja porque o creme de dia tem fator de proteção solar, e só faz sentido nesse contexto, ou porque o creme de noite contém ingredientes que se degradam por exposição à luz solar, como o retinol, e são mais pertinentes nessa altura. Mas nem todas as pessoas têm estas rotinas. E até que ponto fará sentido comprar mais um produto, com base na promessa de que “funciona durante a noite”, se não sabemos em que medida é que isso terá um impacto visível na aparência ou no estado da nossa pele? É importante questionarmo-nos a nós próprios, e às marcas, acerca destas questões quando pretendemos adquirir produtos com base em alegações deste género. Porque se a marca não nos conseguir esclarecer, talvez aquele produto não seja tão necessário como parece para a nossa rotina.
Também desmonta outras ideias curiosas: pode ser pior secar cabelo ao ar que com secador. E beber água com limão de manhã não vai garantir-nos a imortalidade…
A ideia é que não levemos tudo tão a sério. Até os hábitos que nos parecem inquestionáveis como sendo saudáveis podem ser questionados. E até que ponto um detalhe destes fará a diferença a longo prazo na nossa aparência ou estado de saúde? Um copo de água com umas gotas de limão é apenas isso. Possui uma quantidade de vitamina C muito baixa, não tem poderes mágicos, e muito menos a capacidade de iniciar qualquer transformação revolucionária no nosso organismo. Se este é um hábito do qual gostamos, ótimo! Mas não é produtivo sobrecarregar o nosso dia-a-dia com regras sem fundamento, que no seu conjunto nos exigem um grande investimento e energia da nossa parte mas cujo benefício será pouco ou nenhum.
Suplementação com colagénio, suplementos alimentares antioxidantes, massagens faciais…diz que muitos auxiliares como estes não têm ainda eficácia comprovada. Como lidar com as modas e novidades no mercado? Em caso de dúvida, diria que é preferível esperar para ver?
Com informação e ponderação. Defendo que os consumidores devem conhecer os prós e os contras daquilo que consomem e quais as expectativas que podem depositar nestes produtos ou serviços de forma realista. Só assim é possível fazer escolhas informadas, e adequadas àquilo que podemos e queremos investir. Contudo, estes assuntos não podem ser colocados no mesmo patamar, porque uma massagem, facial ou corporal pode ter um ótimo efeito no nosso bem-estar e na aparência imediata da nossa pele, mesmo que os seus efeitos a longo prazo sejam questionáveis na grande maioria dos casos. Já quando falamos de suplementos alimentares, não é possível ponderar efeitos imediatos. E quando vamos avaliar a evidência de que dispomos acerca da eficácia a longo prazo para uma grande parte destes produtos, as respostas são francamente desanimadoras. Porém, os suplementos alimentares são produtos de venda livre, e que por isso podem ser adquiridos por quem assim desejar. Mas isso também não faz deles totalmente inofensivos, o que pode ser especialmente relevante quando a pessoa toma medicação crónica ou sofre de alguma patologia. Quando o assunto é suplementação, é muito importante obter informação de fontes fidedignas ou profissionais de saúde, como são os nutricionistas, farmacêuticos e médicos.
Que passos muito básicos fazem maravilhas pela nossa pele e nem nos lembramos? Quais os seus essenciais diários de beleza? Dizia que é mais importante usar um protetor solar que um creme anti rugas.
No livro e no blogue, destaco sempre três passos: limpeza, proteção solar e hidratação. A limpeza porque nos permite remover todos os resíduos com os quais contactamos no dia-a-dia e as células mortas da nossa pele, o que por si só já contribuirá para uma tez mais homogénea, luminosa, e também para a redição da olesidade excessiva. A proteção solar é especialmente relevante para quem pretende prevenir ou corrigir os sinais do envelhecimento da pele, já que os efeitos nocivos da radiação solar a este são bem conhecidos nesta vertente, ou para quem trabalha ao ar livre, como forma de prevenção da queimadura solar e cancro cutâneo. Por fim, a hidratação é importante para devolver à nossa pele aquilo que é retirado durante a limpeza, dar conforto, ou “entregar” ingredientes ativos que podem ser interessantes para cada pessoa. Há quem não sinta a necessidade de usar hidratante, e também quem não passe sem menos de 5 ou mais produtos por dia. Na verdade, cada pessoa estabelece a sua relação com os produtos cosméticos.
Quais acredita que sejam os grandes desafios do mundo da cosmética no futuro próximo?
A conciliação entre o aumento da sustentabilidade na indústria e a inovação parece-me desafiante, sobretudo se pensarmos que as verdadeiras mudanças não passam por ter produtos mais naturais como muitas vezes é comunicado, mas sim por otimizar todo o ciclo de vida do produto respeitando as pessoas, a economia e o ambiente. Isto afeta desde a forma como as empresas tratam os trabalhadores, a obtenção das matérias-primas, a produção, a utilização do produto por parte do consumidor ou descarte das embalagens, entre muitos outros aspetos. Há cada vez mais consumidores conscientes disto, e é importante que as marcas encarem o desafio de tornar a indústria mais sustentável refletindo acerca de todos estes fatores.