A partir da sede da Fundação José Neves, no Porto, o empresário português (o quarto mais rico do pais, pelas contas que a Forbes fez em 2019) apresentou ao mundo a sua mais recente empreitada — uma fundação, que contará com dois terços da sua fortuna em vida, bem como da herança, e que tem como principal objetivo “colocar Portugal na liderança do desenvolvimento humano nos próximos 20 anos”.
Para isso, montou uma emissão em direto de quase quatro horas, conduzida por Catarina Furtado e transmitida em múltiplas plataformas digitais, na tarde desta terça-feira. A representar o novo projeto, o milionário não esteve sozinho — ao lado, Carlos Oliveira e António Murta, presidente executivo e administrador não executivo da fundação, respetivamente, e ambos cofundadores, completaram o trio de anfitriões, até porque, nas palavras do dono da Farfetch, sem eles “não havia fundação”.
A génese do novo projeto marcou, aliás, o arranque da primeira de várias conversas. “Queria fazer algo na filantropia há vários anos”, admitiu o empresário, recordando o apoio de David Goldberg, dirigente da Founders’ Pledge, num período em que “não tinha tempo nem nitidez” para pensar em ser filantropo. Há dois anos, revelou ainda, a intenção de criar a fundação ganhou forma.
Sobre o compromisso assumido para com a fundação homónima, José Neves destacou o valor não monetário, uma referência sentida a variantes difíceis de mensurar, tais como “talento, paixão, recursos, conexões” e capacidade de “trazer novas ideias” e de “trabalhar com outras fundações”.
Somos inspirados pelo compromisso do José e é com expectativa que esperamos descobrir mais sobre a fundação num futuro próximo”, afirmou Robert Rosen, representante da Bill & Melinda Gates Foundation
A promoção de acesso à educação, bem como o trabalho de potenciar as competências do futuro são, atualmente, as frentes mais ativas de um projeto que ainda agora começou. Contudo, a fundação nasce sustentada noutros dois pilares — a projeção da educação do futuro e o desenvolvimentos pessoal. Em todos eles, os cofundadores da Fundação José Neves contaram com convidados de luxo. Das experiências mais pessoais a enquadramentos políticos, sociais e económicos, as reflexões foram tão plurais quanto os quadrantes representados por Naomi Campbell, o músico will.i.am, Niklas Zennstrom, fundador do Skype, e Andreas Schleicher, diretor de Educação e Competências da OCDE.
Fundação José Neves investe 5 milhões de euros em 1.500 bolsas para estudantes
Mas antes de encetar o painel, quem participou na emissão foi Robert Rosen, na qualidade de porta-voz da Bill & Melinda Gates Foundation. “A fundação há muito que se concentra na educação e no desenvolvimento de competências nos Estados Unidos e continua a ser uma das nossas principais missões, por isso, é com um grande prazer que vemos a Fundação José Neves a investir nestas áreas vitais em prol do povo português”, afirmou. “Somos inspirados pelo compromisso do José e é com expectativa que esperamos descobrir mais sobre a fundação num futuro próximo”, rematou Rosen, que se despediu em português com um: “Obrigado e boa sorte”.
“Sempre fui admirador do Bill Gates, desde que comecei a programar, com oito anos”, admitiu José Neves, durante a entrevista com Catarina Furtado. Mas além de admirador, José Neves é agora o primeiro português a integrar a Giving Pledge, união de filantropos fundada pelo casal Gates e por um outro ilustre bilionário, Warren Buffett, em 2010 e que conta hoje com 211 membros espalhados por 24 países.
Will.i.am: “Temos de garantir que estas crianças entendem de robótica, inteligência artificial e algoritmos”
Outro dos convidados da tarde foi o músico William Adams, mais conhecido como will.i.am, integrante do grupo Black Eyed Peas. Uma escolha inusitada que José Neves começou por contextualizar: “Nasceu num bairro pobre e a mãe colocava-o todos os dias num autocarro para ir para um dos melhores colégios de Los Angeles. Pensei nele por isso e dei-lhe uma ligadela”.
Responsável pela própria fundação — a i.am.angel –, além de fundador da i.am+, empresa californiana dedicada a unir moda e tecnologia através de equipamentos de ponta vestíveis, o músico demonstrou ter consciência do poder da educação e da importância de apoiar crianças, sobretudo em grupos menos privilegiados. De um ensino com base em projetos e focado na tecnologia e na ciência, William chegou mais tarde à música, área que lhe permitiu ganhar uma visão mais ampla das necessidades educativas das diferentes comunidades.
No mundo que está agora a ser desenhado, de forma rápida e violenta, temos de garantir que estas crianças entendem de robótica, autonomia, inteligência artificial e algoritmos complexos. É importante que não se repita a injustiça que existe atualmente”, afirmou will.i.am
“É importante que as crianças percebam o mundo que aí vem, porque o mundo que aí vem está em transição, está a ser desenhado agora. E faz sentido que estejam no meio desta mudança e ajudem a fazê-la”, indicou o músico, entrevistado à distância pelo próprio José Neves.
“Se pensarmos no mundo em que vivemos hoje e nos miúdos privados de direitos que vêm destes bairros, isso acontece porque eles não fizeram parte das mudanças quando elas estavam a acontecer. Aconteceu porque não eram educados nos seus bairros sobre a ciência dos computadores nos anos 80. Não foram educados nos anos 90. E não foram educados nos anos 2000 sobre internet móvel”, continuou.
Num exercício de reflexão sobre a urgência da inclusão, numa perspetiva tecnológica e de futuro, will.i.am salientou a importância da educação hoje como forma de eliminar fenómenos de exclusão social como a que predominava no contexto em que cresceu e que continua a existir.
“No mundo que está agora a ser desenhado, de forma rápida e violenta, temos de garantir que estas crianças entendem de robótica, autonomia, inteligência artificial e algoritmos complexos. É importante que não se repita a injustiça que existe atualmente”, referiu.
O músico e filantropo continuou. “Vejam a questão da justiça. Se não foram as pessoas negras que criaram as leis e se não são elas que as aplicam, quem é que sai prejudicado? As pessoas negras. Porque é que haveríamos de querer o mesmo para as máquinas quando elas começarem a julgar? E quando se tornarem mais poderosas e sugerirem como as cidades são geridas e quem é educado? É super importante”, rematou.
Andreas Schleicher: “Em Portugal, a boa investigação não se traduz em inovação”
Também o diretor de Educação e Competências da OCDE, Andreas Schleicher, participou no evento virtual que marcou o lançamento da Fundação José Neves. O responsável começou por felicitar a iniciativa do empresário português e por salientar os avanços do país no que à educação diz respeito. “É uma iniciativa muito necessária em Portugal. Os níveis de habilitações escolares têm subido em flecha nas últimas décadas. O sistema educativo ficou muito mais orientado para as competências, dando mais importância à capacidade dos estudantes para aplicarem o conhecimento, o que não acontecia”, afirmou.
Contudo, a exposição de Schleicher chegou a uma parte menos favorável do cenário português. “Há muitos jovens inteligentes a deixar o país porque não encontram empregos para transformar as suas competências em vidas melhores. Em Portugal, a boa investigação não se traduz em inovação. Creio que é o pipeline das competências que precisa de ser melhorado”, indicou, fazendo ainda referência à necessidade de “conectar” os mais velhos com o “mundo moderno” e não “deixá-los para trás”.
Questionado por Carlos Oliveira, cofundador e presidente executivo da fundação, sobre o caminho para melhorar a relação entre a escola e o mercado de trabalho, Schleicher a importância de trabalhar as competências, para além da educação, o que vai de encontro ao segundo pilar da fundação. “À primeira vista, as estatísticas de Portugal são bastante boas. Das pessoas com qualificações ao nível do secundário, quase metade tem uma licenciatura vocacional. Entre os trabalhadores mais velhos, apenas é apenas 12%”, afirmou.
Há muitos jovens inteligentes a deixar o país porque não encontram empregos para transformar as suas competências em vidas melhores. Em Portugal, a boa investigação não se traduz em inovação. Creio que é o pipeline das competências que precisa de ser melhorado”, disse Andreas Schleicher
“Houve mais gente a adquirir orientação e qualificação vocacional, mas tudo baseado na educação. O que sabemos pela investigação é que as competências da vida real são a componente baseada no trabalho que ainda falta para que consigam integrar melhor a economia e o mercado de trabalho, não apenas com a educação”, continuou. “Isto não é apenas verdade nos estágios. Digo o mesmo em relação às universidades que estão, muita vezes, desligadas das necessidades reinais das pessoas”, concluiu.
Niklas Zennstrom: “É uma grande responsabilidade garantir que, daqui a dez ou 20 anos, a tecnologia continua a ser uma força do bem”
É sueco, cofundador do Skype e da Atómico, um fundo de capital de risco, e um oradores convidados por José Neves. Questionado sobre os desafios lançados pela própria tecnologia no futuro, no âmbito do terceiro pilar orientador da fundação, Niklas Zennstrom fez referência a um “período extremamente transicional”. “A tecnologia assumiu imenso poder. Isso é uma grande responsabilidade para nós empresários e investidores, de garantir que, daqui a dez ou 20 anos, a tecnologia continua a ser uma força do bem”, referiu.
Aos avisos, seguiu-se o entusiasmo face aos avanços em áreas como a computação quântica, a biologia sintética computacional e a inteligência artificial. “Se combinarmos algumas dessas tecnologias, é provável que nos próximos dez anos vejamos muitos progressos nos cuidados de saúde. Julgo que seremos capazes de tratar muitas doenças que até aqui não conseguimos tratar”, rematou.
Para desenvolver um país de forma a que a maioria das pessoas seja saudável e feliz, creio que é preciso ter o máximo de igualdade possível, igualdade de oportunidades. E acho que isso começa pelo acesso à educação”, disse Niklas Zennstrom
Contudo, Zennstrom não isentou a área tecnológica de responsabilidades para com a atual situação climática do planeta, referindo mesmo que o papel do empreendedorismo tecnológico na transformação de processos que usam ou emitem gases nocivos para o ambiente em métodos sustentáveis.
Em relação à melhor forma de desenvolver um país, na ótica do desenvolvimento humano, José Neves pediu ao empresário que respondesse enquanto sueco. “Para desenvolver um país de forma a que a maioria das pessoas seja saudável e feliz, creio que é preciso ter o máximo de igualdade possível, igualdade de oportunidades. E acho que isso começa pelo acesso à educação”, respondeu.
“A Suécia é um dos países com maior mobilidade social na Europa e isso é fundamental. Podemos olhar também para a Finlândia — eles são colaborativos e com pouco ego. E temos muito a aprender com Portugal, no que diz respeito ao tratamento dos idosos na sociedade. Nós temos uma visão muito utilitária. Quando as pessoas envelhecem mando-las para lares e tentamos gastar o mínimo dinheiro nesses lares”, concluiu.
António Horta-Osório: “Metade das licenças por doença no Reino Unido têm a ver com saúde mental”
Há cerca de dez anos no leme do banco britânico Lloyds (a chegada coincidiu com uma injeção de mais de 20 mil milhões de libras por parte do governo), António Horta-Osório foi outro dos convidados da tarde. Durante a conversa com o anfitrião, o banqueiro português deixou de lado o debate tecnológico, bem como os olhares sobre os mercados financeiros. Foi sobre saúde mental que conversaram.
Foi um despertar, comecei a pensar seriamente em como podia aproveitar a minha experiência para ajudar os meus colaboradores. Metade das licenças por doença no Reino Unido têm a ver com saúde mental. Não é nada que deva ser escondido, não é nada de errado”, revelou Horta-Osório
“Passei a dormir muito, muito pouco e ao fim de vários meses isso começou a tornar-se num ciclo vicioso em que cada vez estava mais cansado. Sendo uma situação completamente nova para mim, foi muito difícil de aceitar e de lidar. Ao fim de cerca de seis meses tive de tirar seis semanas de licença e entrar numa clínica para poder dormir e recuperar”, recordou Horta-Osório, ao relatar a sua chegada conturbada à gestão do banco inglês.
Seis semanas depois, voltou ao trabalho e não demorou muito até encontrar forma de reverter a experiência pessoal em apoio e informação útil para os que o rodeavam.
O resultado tornou-se real há cerca de um ano, altura em que o banco inaugurou um portal de apoio para ajudar os cerca de 65 mil funcionários nesta matérias. O apoio passa atualmente por uma programação de webinars, segundo explicou o português, mas também por grupos de WhatsApp dedicados a temas específicos no âmbito da saúde mental.
Naomi Campbell: “Começou tudo em 1993. Nunca tinha ouvido a palavra filantropia”
A mais aguardada das conversas ficou para a reta final da emissão. Ao final da tarde, a conversa entre José Neves e Naomi Campbell focou-se no trabalho de filantropia levado a cabo pela manequim britânica há mais de duas décadas. “Começou em 1993. Nunca tinha ouvido a palavra filantropia”, revelou Campbell no arranque da entrevista. Estava de visita à África do Sul, onde decorria o concurso de Miss Mundo. Numa total alteração de planos, deu por ela numa convenção do Congresso Nacional Africano, presidido por Nelson Mandela. Depois de decidir doar todos os lucros da sua viagem à organização, foi convidada a voar até Pretoria para conhecer Madiba.
“Fui e foi mágico. E continua ser muito importante para mim hoje, há coisas que ele me disse que continuam a vir ter comigo, sobretudo neste momento em que lidamos com a quarentena, em que estamos confinados e isolados. Penso em como ele se deve ter sentido ao passar 27 anos confinado e isolado. Em como se manteve como um homem humilde, que não fazia julgamentos”, recordou numa conversa emotiva.
A educação é a chave. Temos de investir globalmente e não é falar no globo e deixar de fora África e a Índia. É preciso chegar a esses lugares, a esses mercados emergentes. Temos de ensinar competências, temos de acolhê-los, de respeitar a cultura, de lhes dar um lugar à mesa. É nisso que estou concentrada”, afirmou Naomi Campbell
Mas Naomi prosseguiu na história da sua relação com a filantropia. Antes da Fashion for Relief, organização de beneficência que a celebrizou como ativista e filantropa, a estrutura solidária tinha outro nome — Frock and Roll, nasceu ainda nos anos 90 e chegou a reunir nomes como Alexander McQueen, Gianfranco Ferré, Bono Vox e Wyclef Jean num único evento.
Mas 2005 foi o ano da mudança. O furacão Katrina havia devastado Nova Orleães e Naomi idealizou uma angariação de fundos à altura do flagelo. A José Neves, revelou ter conseguido a maior tenda da Semana da Moda de Nova Iorque. Encheu-a com entradas pagas e com estrelas de todos os quadrantes — de Anna Wintour a Beyoncé. “Foi assim que a Fashion for Relief” nasceu. Depois desta, muitas outras calamidades exigiram respostas humanitárias rápidas — o sismo do Haiti, o Ébola e o conflito armado na Síria, entre muitas outras.
“A educação é a chave. Temos de investir globalmente e não é falar no globo e deixar de fora África e a Índia. É preciso chegar a esses lugares, a esses mercados emergentes. Temos de ensinar competências, temos de acolhê-los, de respeitar a cultura, de lhes dar um lugar à mesa. É nisso que estou concentrada”, admitiu.
Questionada sobre o peso da tecnologia no futuro, Campbell voltou a sublinhar os países subdesenvolvidos como um alvo de investimento urgente. “Há crianças que não podem optar pelo ensino em casa porque não têm acesso a um computador e nós damos isso como garantido. Há crianças sem acesso a Wi-Fi. Temos de encontrar uma forma de chegar a todas estas crianças, temos de garantir que estão ligadas e conectadas para poderem receber uma educação. Nestes mercados emergentes, há muita gente sem casa, mas podem ter um telefone e com esse telefone podem aprender”, defendeu.
Numa tarde que já ia longa, a supermodelo de 50 anos rematou a ronda de conversas e reflexões com uma mensagem de esperança. “Sinto-me otimista em relação ao futuro. Este recomeço é necessário. Temos de permanecer humildes nesta situação, compassivos e temos de partilhar mais”.
Naomi Campbell. A cor que transformou a indústria da moda faz 50 anos
Mesmo a decorrer remotamente, o evento de lançamento da Fundação José Neves juntou muitos outros oradores convidados. Pelo ecrã do empresário português passaram James Higa, filantropo e antigo Chief of Staff de Steve Jobs, Jean-Philippe Courtois, presidente da Microsoft Global Sales, Marketing & Operations, Pedro Santa Clara, Professor Universitário e Professor da 42 Lisboa, Carlos Coelho, CEO da Ivity, o monge budista Lama Michel e David Goldberg, CEO da Founders’ Pledge.