De tempos a tempos, Marcelo Rebelo de Sousa decide falar para, com recados mais ou menos explícitos, procurar pôr ordem na casa. E pressionar, ou puxar orelhas. Foi o que fez esta tarde no âmbito da apresentação da estratégia agrícola para 2020-2030 promovida pela Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), em pleno processo de negociação do Orçamento do Estado e a duas semanas de o Governo enviar para Bruxelas o chamado Plano de Recuperação e Resiliência com a proposta de resposta à crise num horizonte alargado de 10 anos.
Lembrando que os ciclos eleitorais estão a ficar cada vez mais curtos, já que a estabilidade do Governo minoritário de António Costa é negociada ano a ano (orçamento a orçamento), o Presidente da República alertou para o facto de haver “duas maneiras de provocar crises orçamentais”: inviabilizando o documento, primeiro, ou aprovando iniciativas legislativas paralelas ao longo do ano que desvirtuam de certa forma o orçamento que está em curso. Nenhuma das duas é desejável e ambas têm um “preço”. A isto acresce que, a par dos orçamentos anuais, há agora um outro fator a ter em conta que é a “bazuca” de Bruxelas que vai ter de ser gerida ao longo dos próximos 10 anos por qualquer que seja o Governo que está em funções. Ou seja, é preciso estabilidade. E para isso é preciso definição. É preciso que os partidos — os parceiros da ‘geringonça’, primeiro, mas o PSD, depois — digam se podem ou não garantir essa estabilidade. Caso contrário, haverá um “preço a pagar”.
“Isto é um dado que não tem a ver com o governo ser um ou ser outro, aplica-se a qualquer governo com qualquer oposição. Quem for governo ao longo de 10 anos defrontar-se-á com esta questão, que é bom que seja clarificada. Quer-se ou não se quer? E quer-se em que condições? É um processo que por natureza é muito longo e exigente, e também aqui é democraticamente legítimo dizer-se que não se quer, ou que não se quer naqueles termos, mas isso tem um preço. É bom que se tenha noção do preço envolvido nesse contexto”, disse, exigindo clarificação.
O aviso pode ser dirigido à esquerda, já que para o Presidente é desejável que exista sempre uma alternativa de governação, mas parece encaixar também no PSD de Rui Rio, já que estes fundos de Bruxelas são para ser executados em 10 anos e Marcelo lembra que em 10 anos cabem três governos (este e mais dois). Ou seja, o PSD também não pode fugir à chamada, sobretudo se tudo falhar à esquerda.
“Se desde logo se colocar a questão em termos de ‘nós e eles’ — [o plano] é nosso ou deles –, imediatamente começamos a perder esta batalha. Claro que a democracia supõe o pluralismo, que é o contrario de unanimismo e implica alternativas. Assim haja alternativas (porque sem alternativas isso significa o crescimento dos radicalismos e extremismos), mas há matérias relativamente às quais, porque ultrapassam mandatos presidenciais e governamentais, porque ultrapassam dois ou três mandatos, em que tem de haver uma continuidade que pressupõe um consenso político e duradouro“, avisou, exigindo com isto clarificação aos partidos e dando o exemplo dos parceiros económicos e sociais, como a Confederação Portuguesa dos Agricultores, que estão abertos a esse consenso.
Crises orçamentais à esquerda? Marcelo não quer “mini-ciclos orçamentais de desfecho imprevisível”
A questão é que os próximos tempos vão ser vividos em duas linhas temporais: a linha anual dos orçamentos do Estado, e a linha estrutural do plano de recuperação de longo prazo. O que Marcelo quer dizer é que uma crise numa destas linhas pode minar os entendimentos na outra, e isso é para evitar. Foi aí que, no discurso que fez depois da reunião com a CAP, alertou para a eventual “incompatibilidade entre este processo no seu arranque e crises orçamentais que radicalizem não só o discurso, mas também enfraqueçam condições iniciais de execução daquilo que se quer para o médio e longo prazo”.
O problema é que os ciclos eleitorais estão cada vez mais curtos e instáveis, na medida em que parecem ser decretados não pelas eleições legislativas de quatro em quatro anos, mas sim pela negociação ano a ano dos orçamentos do Estado — chamou-lhes “mini-ciclos orçamentais de desfecho imponderável e imprevisível” — e isso pode prejudicar os entendimentos que se querem de longo prazo.
“Em democracia há ciclos eleitorais, e ainda bem que há. Mas era bom que não se somassem aos ciclos eleitorais, mini-ciclos orçamentais de desfecho imponderável e imprevisível”, disse, sublinhando que não há como dissociar a visão estratégica de longo prazo e o “stop and go” dos orçamentos. Ou seja, os avanços e recuos dos orçamentos estão intimamente ligados aos acordos de médio e longo prazo. Uma falha num lado pode fragilizar o outro. “Há uma ligação inevitável entre o que se projeta como visão estratégica para o país a médio e longo prazo, e o stop and go, os avanços e recuos, em termos orçamentais”, disse.
É aí que Marcelo alerta para o perigo de haver “crises orçamentais”. E por crises orçamentais entende duas coisas: uma é a inviabilização do Orçamento, ou seja, se o BE e o PCP não viabilizarem o Orçamento do Estado a crise é inevitável — e tem um “preço elevado num momento em que estamos a debater documentos como este [plano de recuperação de longo prazo]”. Mas a crise orçamental pode não vir apenas por aí, há outra forma: se os partidos aprovarem, ao longo do próximo ano, várias iniciativas legislativas que de alguma forma “esvaziem” o documento orçamental e o alterem, através de “orçamentos suplementares ou retificados”, então isso também é uma crise em si mesmo.
Os recados estão dados, à esquerda e à direita, e Marcelo avisa que, tanto a provocação de crises orçamentais, como a falta de consenso em torno do plano de longo prazo para a recuperação da crise pandémica, terá um preço que os partidos vão pagar. Um preço eleitoral, leia-se, que se pode traduzir na radicalização de posições e na ascensão dos extremismos. Marcelo ainda lembra que tudo seria mais fácil se a pandemia ainda não estivesse em curso. Mas está. O aviso está dado.