A imprensa espanhola já diz que é um exemplo de “bumerangue” aquele que ficará conhecido como o “Caso Dina” e que, depois de durante meses ter valido a Pablo Iglesias o estatuto de vítima, se virou agora contra ele, com o juiz responsável pelo processo a pedir ao Supremo Tribunal que investigue o líder do Podemos e vice-presidente do Governo espanhol — dada a sua posição na hierarquia do Estado só mesmo o tribunal superior poderá fazê-lo.

Em causa, argumentou esta quarta-feira Manuel García-Castellón, juiz de instrução da Audiência Nacional, estarão crimes de descoberta e revelação de segredos, danos informáticos, falsa denúncia e simulação de crime, alegadamente cometidos com o objetivo de “ganhar vantagem eleitoral”.

O caso remonta a 1 de novembro de 2015 — e ao bolso do casaco do português Ricardo Sá Ferreira, antigo dirigente do Bloco de Esquerda no Porto, assessor do Podemos e então marido da marroquina Dina Bousselham, ex-assessora de Pablo Iglesias. Terá sido de lá, juntamente com a carteira e uma série de outros bens pessoais do casal, que o telemóvel de Dina foi roubado, e com ele o cartão de memória que tinha no interior, enquanto faziam compras no Ikea de Alcorcón, nos arredores de Madrid.

No cartão de memória, além de várias imagens íntimas de Dina, estavam armazenados uma série de print screens de conversas mantidas no grupo de chat da cúpula do Podemos, através da aplicação Telegram  — que, como seria de se esperar, acabaram, a 24 de julho de 2016, nas páginas dos jornais. Cerca de um mês antes, o PP de Mariano Rajoy tinha vencido as legislativas, com 33,1% dos votos, e o Unidas Podemos tinha conseguido o terceiro lugar, com 13,4%.

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“Sou um marxista um pouco perverso que se tornou psicopata”

As imagens das conversas, que começaram por ser reveladas pelo site OK Diario e depois foram reproduzidas pela restante imprensa espanhola, revelaram um Pablo Iglesias bastante diferente daquele a que opinião pública estava habituada. Um auto-proclamado “macho alfa” que se oferece para “partir bocas”, confessa o desejo de açoitar uma conhecida jornalista de televisão “até fazer sangue” e assume não gostar “de crianças, nem de família, nem de caminhar no parque, nem de me vestir bem, nem de ser parado por senhoras idosas”, antes de finalmente concluir: “Sou um marxista um pouco perverso que se tornou psicopata”.

O facto de ter visto a sua intimidade assim devassada, fez com que a Pablo Iglesias tivesse sido concedido o estatuto de vítima, ou lesado, no processo entretanto instaurado contra o antigo comissário da polícia (e, segundo o próprio, espião)  José Manuel Villarejo, por demais conhecido das autoridades espanholas e detido há quase três anos por alegados crimes de branqueamento de capitais e organização criminosa. Aquando das buscas feitas em sua casa, a 3 de novembro de 2017, tinham sido encontrados na posse de Villarejo um disco rígido e uma pen, ambos com duas pastas de imagens — Dina 2 e Dina 3 —, motivos que em março de 2019 levaram Iglesias e a ex-assessora a apresentar-se perante a Audiência Nacional, acusando Villarejo e denunciando uma alegada campanha anti-Podemos.

Acontece que, de acordo com o juiz responsável pelo caso, quem terá passado os ficheiros a Villarejo terão sido Luis Alberto Pozas e Luis Rendueles, à data diretor e sub-diretor da revista Interviú — a mesma que, apesar de estar na posse de uma cópia do cartão de memória, optou por não publicar a informação. Em vez disso, os responsáveis da publicação entregaram a cópia a Antonio Asensio, diretor do Grupo Zeta, que detém o título. Que, por sua vez, a 20 de janeiro de 2016, cinco meses antes da publicação no Ok Diario, passou o cartão de memória ao próprio Pablo Iglesias, que nem por isso o entregou a Bousselham.

“[Iglesias] ficou com o cartão em seu poder, sem o dizer à proprietária, mesmo quando eram pessoas próximas (ela tinha sido sua assessora) e ele tinha conhecimento do desaparecimento dos bens de Dina desde Novembro de 2015”, argumenta o juiz Manuel García Castellón na declaração fundamentada que enviou para o Supremo Tribunal, a solicitar uma investigação ao agora vice-presidente do governo espanhol.

Quando finalmente, quase um ano depois, Iglesias o devolveu a Dina Bousselham, o cartão estaria danificado e ilegível — o que consubstancia a acusação de alegados danos informáticos, feita pelo juiz. Manuel García-Castellón acusa ainda o líder do Podemos de ter “planeado” pessoalmente uma “falsa ação consciente”, “fingindo perante a opinião pública e perante o seu eleitorado, ter sido vítima de um acontecimento que ele sabia não existir, algumas semanas antes de uma eleição geral”.

“Contra o Podemos e contra Pablo Iglesias vale tudo”

A iniciativa do juiz García Castellón, que há apenas três semanas viu superiormente revogada a decisão que tinha formalizado em julho, de retirar o estatuto de vítima a Pablo Iglesias, e que não consultou o Ministério Público antes de decidir interpelar o Supremo, surgiu em contra-ciclo (daí o tal efeito bumerangue) e está a provocar a revolta do Podemos — e as invetivas dos seus adversários.

Pablo Casado, líder do PP, foi dos primeiros a reagir e, através do Twitter, exigiu ao primeiro-ministro, Pedro Sánchez, que afaste “de imediato” o vice-presidente do governo de coligação.

Na mesma rede social, Pablo Echenique, o porta-voz do partido, acusou o juiz de ignorar deliberadamente a Audiência Nacional e o Ministério Público “porque contra o Podemos e contra Pablo Iglesias vale tudo”.

No documento que enviou ao Supremo Tribunal espanhol, Manuel García Castellón acusou ainda Dina Bousselham e Ricardo Sá Ferreira de terem mentido durante os interrogatórios. “Ambos os factos são entendidos como estando relacionados com a ação dos serviços jurídicos do partido Podemos a fim de construir perante o órgão judicial um relato consistente com as instruções dadas pelo secretário-geral do partido”, concluiu o magistrado.

Para além de Pablo Iglesias, de Dina Bousselham e de Ricardo Sá Ferreira, o juiz indiciou ainda, por vários delitos, Gloria Elizo, vice-presidente do Congresso dos Deputados e diretora dos serviços jurídicos do Podemos e Marta Flor e Raúl Carballedo, assessores jurídicos do Podemos.