Está fechado o polémico plano de reestruturação do Santuário de Fátima motivado pelo impacto da pandemia da Covid-19 nas peregrinações e donativos: desde o início do ano, saíram da instituição 47 trabalhadores através de diferentes mecanismos (14 acordos amigáveis de rescisão, 15 demissões por iniciativa do trabalhador e 18 não-renovações de contratos a termo), anunciou esta segunda-feira o reitor o santuário, padre Carlos Cabecinhas, numa longa e tensa conferência de imprensa em que a prestação de contas e a ocultação dos números do Santuário de Fátima foram o tema central. A estes 47 trabalhadores somam-se quatro funcionários que se reformaram e que não foram substituídos.
Durante mais de uma hora, o reitor do santuário, o cardeal D. António Marto (bispo de Leiria-Fátima) e o bispo D. José Ornelas (presidente da Conferência Episcopal Portuguesa) desdobraram-se em explicações para a decisão de não divulgar as receitas e os gastos do Santuário de Fátima, que se arrasta desde 2006 — mas que se tornou ainda mais polémica este ano, depois de as dificuldades financeiras do santuário terem sido invocadas como motivo para a implementação de um plano de redução de custos com os salários dos mais de 300 funcionários da instituição. Depois das notícias iniciais, que davam conta da intenção da instituição de despedir uma centena de funcionários, o Santuário de Fátima confirmou um plano cujo resultado não chegaria à meia centena de saídas.
“O ano de 2020 no Santuário de Fátima tem sido um dos mais difíceis, sem peregrinos e com uma diminuição drástica do fluxo de trabalho“, afirmou o reitor. “Pela primeira vez, celebrámos o 12 e 13 de Maio sem peregrinos e preparamo-nos agora para um 12 e 13 de Outubro com um número de peregrinos extremamente reduzido”, acrescentou Carlos Cabecinhas. Nas celebrações desta segunda e terça-feira, a lotação do santuário está limitada a 6 mil pessoas, distribuídas no recinto com distanciamento de segurança através de círculos marcados no piso.
Entre março e agosto, 436 grupos organizados de peregrinos cancelaram as suas viagens — e entre outubro e novembro o Santuário de Fátima tem apenas 97 grupos inscritos (contra 733 grupos só em outubro no ano passado). Isto refletiu-se numa quebra de receitas de 50,6%, explicou o reitor do Santuário de Fátima, sublinhando que foi a “consciência de que os recursos não são inesgotáveis” que levou a instituição a implementar um plano de reestruturação com vista à redução das despesas. “Quisemos evitar despedimentos“, sublinhou Carlos Cabecinhas. Por isso, as 47 saídas de trabalhadores deram-se sempre por iniciativa dos próprios. “Fizemos reuniões com os grupos, para que ninguém se sentisse diretamente pressionado”, acrescentou o sacerdote, classificando como “suspeitas caluniosas e afirmações gratuitas” as acusações do sindicato dos trabalhadores do setor social, que falou em pressões sobre os trabalhadores para que aceitassem as rescisões.
Carlos Cabecinhas salientou ainda que o Santuário de Fátima procurou saber se o emprego na instituição era a única fonte de rendimento de um agregado familiar antes de não renovar um contrato a termo. “Se não tivéssemos sempre presente esta preocupação, não estaríamos a aumentar os apoios sociais à nossa volta“, acrescentou o padre, detalhando que em 2020 os apoios a pessoas e famílias carenciadas totalizaram os 800 mil euros, um aumento de 60%.
Contas em público? “Estou desejoso de que aconteça”, diz cardeal Marto
Ainda que a crise financeira provocada pela pandemia seja o motivo que levou à necessidade de implementar o plano de reestruturação, o Santuário de Fátima continua irredutível na recusa em divulgar publicamente as suas contas. Na conferência de imprensa desta segunda-feira, perante a insistência dos jornalistas, os responsáveis eclesiásticos aprofundaram as justificações, mas continuaram a remeter a divulgação pública das contas para um futuro impossível de prever. Porém, asseguraram que “não falta vontade para que isso aconteça“, que a divulgação das contas é um “desejo” e que Fátima “não é sociedade secreta nenhuma”.
Nas últimas semanas, têm surgido informações contraditórias sobre quem deve tomar a decisão de divulgar ou não as contas do Santuário. O reitor da instituição, padre Carlos Cabecinhas, remeteu recentemente a responsabilidade para os bispos a nível nacional. “Quando o conselho nacional decidir tornar públicas as contas, serei o primeiro a fazer-me porta-voz“, disse o reitor numa entrevista ao Expresso. Esta semana, numa entrevista ao mesmo jornal, o presidente da Conferência Episcopal, D. José Ornelas (bispo de Setúbal), disse que a decisão na verdade é do Santuário. “Se o Santuário está disposto a isso, tem todo o meu apoio“, disse o bispo, deixando incertezas sobre quem tem o poder de tomar essa decisão.
Esta segunda-feira, os dois responsáveis estiveram na mesma conferência de imprensa, ao lado do bispo de Leiria-Fátima, também membro do Conselho Nacional — o organismo da Conferência Episcopal Portuguesa através do qual os bispos exercem a tutela do santuário, composto por seis elementos. Porém, questionados os três sobre a decisão de não divulgar as contas, manteve-se a dúvida. “O Conselho Nacional toma essa decisão e, obviamente, tem essa questão na agenda. E não a reflete hoje. Há muito que a vem refletindo“, disse o padre Carlos Cabecinhas, não deixando antever quando será possível ter conclusões dessa reflexão.
Quem se alongou mais sobre os motivos da não-divulgação das contas foram os dois bispos presentes. “Há muito trabalho a fazer para termos clareza e transparência“, admitiu D. José Ornelas, sublinhando que é necessário começar pelas estruturas de controlo financeiro. Porém, “é preciso que haja condições” e “clareza no regime concordatário”, acrescentou o líder dos bispos, referindo-se ao diferendo fiscal há muito invocado pelo Santuário de Fátima como justificação para a ocultação dos números. “O Santuário tem uma vertente que vem dos dons voluntários, do que as pessoas dão, é aquilo de que o Santuário vive“, explicou o bispo. Mas, além disso, há outros serviços, como dormidas e lojas, que “entram noutra contabilidade” — e que são sujeitos a um regime fiscal distinto. “Essa dupla valência exige uma dupla valência no estatuto legal”, explicou Ornelas, salientando que “não falta vontade” para que as contas sejam divulgadas.
As contas não são divulgadas, continuou o cardeal António Marto, “por não ser possível determinar exatamente a quantia de impostos a pagar“. “Esta decisão foi tomada em 2006, quando o presidente do Conselho Nacional era o cardeal Policarpo”, acrescentou Marto, lembrando que a expectativa, na altura, era a de que a dúvida ficasse resolvida “em breves tempos”, durante os quais estaria suspensa a divulgação das contas. “Mas até hoje isso não aconteceu. Estou desejoso de que aconteça, não há problema nenhum em que se tornem públicas“, garante. “Tomara eu esclarecer, ver-me esclarecido para poder realizar este sonho também.”