Parece insólito, mas aconteceu. Por culpa da pandemia, na quarta-feira, houve 104 deputados que votaram contra o Orçamento do Estado e apenas 101 que votaram a favor. Apesar de no hemiciclo ter havido mais deputados a levantarem-se no momento do voto “contra”, o OE2021 foi aprovado na generalidade, como anunciou o presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, com os votos a favor do PS, o voto contra de BE, PSD, CDS, Chega e IL e as abstenções de PCP, PAN e PEV. Isto é possível, como já tinha notado a Rádio Renascença, porque os votos são contabilizados por bancada e não de forma nominal. Se cada presença em plenário valesse um voto, o orçamento tinha sido chumbado.

Mas porque pode isto acontecer? Embora os deputados se levantem para a fotografia, a Mesa não conta cabeças já que, de acordo com o regimento, a votação no Orçamento do Estado e noutros casos é feita por bancada e são contabilizados os votos todos dessa bancada. Na forma de votação “por levantados e sentados” — a que está prevista no artigo 94º do regimento como a “forma usual de votar” — a Mesa “apura os resultados de acordo com a representatividade dos grupos parlamentares, especificando o número de votos individualmente expressos em sentido distinto da respetiva bancada e a sua influência no resultado, quando a haja.”

Isto significa que a Mesa contabiliza o total de votos de cada partido, independentemente do número de deputados que estão presentes na sessão. A Mesa só tem de registar diferenças na votação quando os deputados de determinado grupo parlamentar indicam que vão votar de forma diferente da bancada. Isto significa que contaram os 108 deputados que o PS tem eleitos e não os 101 que estavam na sala.

Já se previa que tal pudesse acontecer quando a secretaria-geral do Parlamento informou que havia sete deputados que estavam ausentes na sequência da Covid-19: dois deputados que testaram positivo (uma delas do PS, noticiada pelo Observador), um deputado com um resultado inconclusivo e quatro outros em isolamento profilático. Não se sabia era a que partido pertenciam. O que é certo é que, dos 230 deputados, faltaram sete na bancada do PS e um na bancada do PSD. Assim, votaram a favor os 101 deputados do PS presentes e contra 104 (divididos desta forma: 78 do PSD; 19 do BE; 5 do CDS, 1 do CH, 1 da IL).

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Seria possível votação nominal para travar Orçamento?

Tecnicamente, era possível votar o orçamento de forma nominal. Na prática, seria muito difícil conseguir aprovar essa forma de votação. Desde logo a votação nominal pode ser requerida por um décimo dos deputados (23) — o que a oposição até tem — mas para matérias muito específicas: autorização para declarar a guerra e para fazer a paz; autorização e confirmação da declaração do estado de sítio ou de estado de emergência; acusação do Presidente da República; concessão de amnistias ou perdões genéricos; e reapreciação de decretos ou resoluções sobre os quais tenha sido emitido veto presidencial. Ora, nenhum destes pontos inclui o orçamento.

No entanto, o regimento prevê que haja votação nominal “sobre quaisquer outras matérias, se a Assembleia ou a Conferência de Líderes assim o deliberarem”. Isto significa que, no mínimo, teria de haver acordo da conferência de líderes para que o OE fosse votado de forma nominal. E, tendo em conta que o que estava em causa era deputados estarem ausentes por questões de saúde, dificilmente os líderes de bancada validariam uma solução que pretendesse tirar vantagem de uma situação de doença dos deputados.

Nem sempre as regras foram assim. Quando o regimento foi feito em 1976 não se previa que o voto fosse por grupo parlamentar, embora a Mesa tivesse a função de anunciar quantos deputados estavam em cada bancada. Na primeira versão, de 1976 e durante muitos anos — como é possível verificar nas várias alterações feitas ao regimento — a contagem não era feita por bancada.

O artigo sobre a forma das votações no primeiro regimento da AR

Os deputados que ainda conviveram com as regras anteriores costumam comentar que, em alguns casos — quando as votações eram mais apertadas — chegavam a combinar idas à casa de banho no momento da votação para evitar que o resultado fosse desvirtuado.

A revisão de 2003 (ainda do regimento de 1976) passou a incluir a atual referência. O regimento criado em 2007 manteve a votação por bancada e o mais recente regimento, o de 2020, também.