No dia dedicado à homenagem aos mortos, em Vila Nova de Gaia, no distrito do Porto, quem ruma aos cemitérios cumpre as regras que a Covid-19 impôs. Não há abraços. Só olhares cúmplices entre famílias “vizinhas” de jazigo.

“O meu mais novo veio e já foi. Tem de ir a outro [cemitério] onde está a família da mulher. O que mora em Barcelos não pode vir este ano. Não dá para passar com o carro”, descreve Maria José Silva, 80 anos, residente em Santa Marinha, no concelho de Gaia.

Para quem começou a trabalhar aos 11 anos numa fábrica de fazer guarda-chuvas em Lordelo do Ouro, no Porto, e ficou viúva aos 40, “tinha o mais novo de cinco filhos nove meses”, não há “vírus que meta medo” ao ponto de deixar de visitar os familiares que já morreram.

Foi a “vizinha de jazigo” que lhe arranjou a campa do marido e dos sogros porque os joelhos já não permitem que se baixe e os filhos pediram que se mantenha por casa. “Mas faltar? Hoje. Nunca”, garante.

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Este domingo, feriado do Dia de Todos os Santos, no qual é tradicionalmente celebrado, por antecipação, o Dia dos Fiéis Defuntos, em Vila Nova de Gaia, os cemitérios estão abertos das 07h30 às 19h30.

Ao horário alargado, juntam-se regras sanitárias como o uso de máscara, os circuitos de entrada e saída e a proibição de permanecer mais de 45 minutos no interior.

Para prevenir ajuntamentos, à porta há polícia e as celebrações religiosas foram canceladas, mas Agostinho Vieira, membro da Junta de Freguesia de Santa Marinha e de São Pedro da Afurada, não acredita que venha a ser preciso intervir.

“Repare que são 10h00 da manhã e isto está assim: pouca gente. Em qualquer outro ano estaria já composto. As pessoas prepararam as sepulturas ontem [sábado] ou durante a semana e hoje fazem visitas mais rápidas do que o habitual”, descreve à Lusa.

Num concelho que pertence à lista de 121 municípios que entrarão em confinamento parcial a partir de quarta-feira devido à pandemia do novo coronavírus, Agostinho Vieira admite que a decisão de abrir os cemitérios — tomada pelas Juntas de Freguesia, Câmara Municipal e Paróquias de Gaia — foi “controversa”, mas recorda que este é um dia “muito especial e marcante para algumas pessoas” e que há quem “se revolte e ache que é uma contradição ver público nas corridas de Fórmula 1 e espaços a céu aberto fechados”.

Vitória Novais, 69 anos, nascida na Afurada e residente em Canidelo, foi uma das pessoas que decidiu “assear as campas da família de véspera”. Mostra à Lusa os antúrios brancos, as orquídeas amarelas e as folhas de eucalipto que escolheu com alguma vaidade, mas também alguma pressa. O cronometro está a contar.

“Se não existisse essa coisa [pandemia da covid-19] passava aqui o dia todo. Hoje são 45 minutos. Mas, pelo menos, está aberto”, refere, enquanto ajeita a máscara cirúrgica junto aos olhos e procura nos bolsos o isqueiro para acender as velas. Sai-lhe do bolso esquerdo outra máscara e do direito um frasquinho de álcool gel.

“Eu ponho disto porque sai. Em casa é água fervida, gotas de sumo de limão e lixivia. E agora vou para aquele canteiro [apontando para a entrada sul do cemitério] para pôr velas nas campas de outros familiares e de pessoas amigas. Há muito quem não possa vir hoje, mas eu, podendo, faço-lhes a vez”, afirma.

O Governo limitou a circulação entre concelhos do território continental entre sexta-feira e terça-feira com o objetivo de “conter a transmissão do vírus e a expansão da doença”.

À porta, Célia Salgueiro, voluntária da Liga Portuguesa Contra o Cancro e da Paróquia de Coimbrões vai interpelando as pessoas para pedir um donativo. É o seu terceiro dia no cemitério de Santa Marinha e o quinto ano consecutivo.

“Na sexta-feira e ontem [sábado] veio mais gente. Comparar com o ano passado nem vale a pena. Mas é nisto e em tudo. A pandemia mudou tudo. Até para estes peditórios há falta de gente. Às vezes são os mais velhos, os mais frágeis, que dão a mão e fazem um turno. Há muitos novos que têm medo ou afazeres diferentes. A pandemia reacendeu tudo: o medo, o egoísmo, a fome. Não eu não critico. Entendo. É tudo muito difícil”, lamenta.

Enquanto estende a caixa de donativos a quem visita o cemitério, Célia aproveita para ir corrigindo algumas máscaras mal colocadas ou avisando que a entrada e a saída têm circuitos próprios. O mesmo faz a equipa de Jorge Pacheco, membro da Junta de Freguesia de Mafamude e Vilar do Paraíso, no cemitério que fica mesmo no “coração” de Vila Nova de Gaia.

“Pedimos que desinfetem as mãos ali [mesa com álcool gel junto à porta] e usem luvas se partilharem baldes. Corre muito bem. Todos percebem e respeitam as regras”, refere o responsável que falava à Lusa cerca das 08:30, quando se contavam pelos dedos das mãos as pessoas que visitavam o cemitério de Mafamude.

Uma dessas visitantes é Cândida Miranda. Tem 82 anos e “todas as semanas há mais de 30 anos” que vai colocar flores à campa da mãe, do marido e de uma filha. Escolheu “umas melhorzinhas” no dia de hoje, “mas não é porque as vizinhas comentem, é porque o dia é especial”, diz à Lusa.

“Vim cedo para encontrar pouca gente. Mas não tenho medo. Quem já vendeu na rua, ao frio e à chuva, não tem medo”, aponta. Mesmo assim a máscara está colocada e cumpre distanciamento social face a quem a cumprimenta como é o caso de Ofélia Ferreira, de 80 anos, para quem este dia “é triste, mas muito muito importante”.

“Eu venho ao cemitério muitas vezes, mas tenho uma vizinha que não pode e eu trago-lhe as velas. Hoje então, tinha de vir por mim e por ela. São homenagens”, afirma.

Ofélia chama ao novo coronavírus, que já provocou mais de 1,1 milhões de mortos no mundo desde dezembro do ano passado, incluindo 2.507 em Portugal, “aquela porcaria que apareceu para ai” e frisa: “Não é brincadeira nenhuma, mas se me meto no sofá é pior”.