O depoimento já tinha tido alguns picos de tensão, mas foi quando os juízes começaram a fazer perguntas sobre um iate que Nélio Lucas teria comprado que o copo transbordou. Subindo o tom de voz, o ex-administrador da Doyen acabou por fazer uma comparação inesperada: “Eu sou como aquela senhora que foi violada e depois tem de explicar porque é que foi violada” — sendo que, neste caso, o crime de que terá sido vítima foi uma alegada tentativa de extorsão por parte de Rui Pinto. Mesmo depois de a juíza-adjunta, Ana Paula Conceição, lhe ter pedido calma, o empresário questionou: “Porque sou vítima de um crime, tenho explicar quem eu sou?”

Já não era a primeira vez que Nélio Lucas se mostrava exaltado perante as perguntas, aparentemente sem relevância para o processo do Football Leaks que está a ser julgado. Já na sessão da manhã, o empresário ligado ao futebol acabou mesmo por sugerir que o tribunal devia ter feito uma pesquisa. “Se tivesse feito um trabalho de pesquisa, que acredito que não tenha feito, não tem que o fazer…”, disse, dirigindo-se à juíza presidente do coletivo, Margarida Alves. Também desta vez, foi juíza-adjunta que saiu em sua defesa:

Já percebi que é uma pessoa que gosta de falar. Agradeço respostas diretas. Não vamos derivar. Nós sabemos exatamente aquilo que estamos aqui a fazer. Agradecia respostas diretas e sem considerações colaterais”

Depois da reprimenda, Nélio Lucas ainda tentou esclarecer que não faltava “ao respeito a ninguém”, mas a juíza-adjunta lembrou-o que, “quanto a esse assunto” não iam “dialogar” e estavam “encerrados”. Mas a juíza Ana Paula Conceição mal podia imaginar que não estavam “encerrados” como desejava. Pela tarde, naquela que é a 21.ª sessão do julgamento do Football Leaks, quando Nélio Lucas perguntou por que razão tinha de explicar quem era ao tribunal, a presidente do coletivo, lembrou-o que enquanto testemunha tinha de “esclarecer o tribunal”. “Este processo não se centra só à sua volta. Há outras versões da história que o senhor pode não ter conhecimento”, disse a juíza Margarida Alves, apontando: “Não me interessa a sua vida pessoal. Por mim pode comprar 10 barcos“.

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Nélio Lucas, ex-administrador do Doyen Group com a sua advogada, Sofia Branco (André Luís Alves/Global Imagens)

Se é verdade que algumas perguntas podiam dar a ideia de que Nélio Lucas não estava a ser inquirido como testemunha, mas sim interrogado enquanto suspeito de crimes, também é verdade que o tribunal está a julgar Rui Pinto que se apresenta como denunciante — e julgá-lo passará não só por produzir provas dos crimes de que está acusado, mas também descobrir se a sua defesa tem fundamento, isto é, perceber se havia algo para denunciar.

Nélio Lucas teve “medo” quando recebeu email de Artem Lobuzov, mas não ficou preocupado “em termos criminais”

A ligação de Nélio Lucas e Rui Pinto começa quando o alegado hacker lhe terá enviado um email, escrito em português, mas assinado com o nome Artem Lobuzov, em que era exigido um pagamento entre 500 mil e um milhão de euros para que não publicasse no site do Football Leaks documentos que teria na sua posse — isto, segundo a acusação. Quando recebeu esse email, primeiro, a reação foi “positiva”: “Finalmente, estava a perceber o que estava a acontecer”, nomeadamente, qual era o objetivo do site Football Leaks em publicar documentos sobre o fundo de investimento Doyen. Mas, depois, a reação “positiva” deu lugar a “estupefação e medo”: “Estava ali uma ameaça”. Ainda assim, garantiu em tribunal que nunca se preocupou com a possibilidade de haver “alguma coisa grave” nesses documentos, mas sim ficou preocupado por uma questão de concorrência.

Não há nenhum conteúdo que estivesse na posse daquele senhor que me preocupasse em termos criminais”, garantiu.

Ainda assim, informou a PJ — a quem já tinha feito uma queixa contra desconhecidos na sequência da publicação de documentos sobre a Doyen no site do Football Leaks. Além disso, Nélio Lucas contratou uma empresa de investigação para tentar descobrir quem era a pessoa que o teria tentado extorquir — que a acusação diz ser Rui Pinto.

Contratámos uma empresa para tentar descobrir quem estava do outro lado. Ninguém percebia qual era a motivação”, disse.

Questionado pela juíza-presidente, Margarida Alves, sobre se a tal empresa teria chegado a alguma conclusão, Nélio Lucas negou, mas não desistiu. Em tribunal, o fundador da Doyen garantiu que pagar, cedendo à extorsão, nunca foi opção. “Nunca tivemos intenção de pagar, como se veio a ver”, disse, adiantando que só continuou a trocar mais emails com o Artem Lobuzov “para ganhar tempo” para “tentar saber quem era”.

As conversações acabariam por resultar num encontro onde esteve Pedro Henriques, advogado com ligações a Nélio Lucas, e Aníbal Pinto, então advogado do alegado hacker — que a testemunha garante que “sabia de tudo o que se estava a passar”. Só que o fundador da Doyen já tinha informado a PJ sobre esse encontro. Hoje, acredita que as informações fornecidas por Aníbal Pinto ajudaram a PJ a chegar a Rui Pinto: “Um jovem entre 20 e 30 anos, a viver no estrangeiro e que já tinha acedido a um banco das Ilhas Caimão”

O encontro secreto entre o ex-advogado de Rui Pinto e a Doyen — com a PJ na mesa ao lado

Empresário criou Doyen com sócio turco que injetou dinheiro de família. “Uma boa forma circular dinheiro de proveniência ilícita”

Nélio Lucas já estava a ser ouvido há mais de uma hora quando foi feita uma pergunta diretamente relacionada com o processo. Isto porque a Procuradora da República e o próprio tribunal estiveram a fazer algumas perguntas sobre como funcionava a Doyen: quando foi criada, por quem, onde estava sediada para que servia e que investimentos fazia. Assim, Nélio Lucas explicou que foi ele que, em 2002, criou a Doyen com um sócio turco: ele era o sócio com 20% de onde vinha a experiência e o cidadão turco era o sócio com 80% de onde vinha o dinheiro, nomeadamente “da família dele”.

Mas a juíza-adjunta, Ana Paula Conceição, quis saber “de onde vinha o dinheiro do senhor”. “Vinha da família”, respondeu apenas Nélio Lucas, lembrado pela juíza de que essa “é uma boa forma de fazer circular dinheiro de proveniência ilícita”. Mas o ex-administrador da Doyen garantiu que ele próprio pediu uma inspeção Anti-Money Laundering (Anti Lavagem de Dinheiro, em português) para avaliar o risco. “Foi certificado que o dinheiro era limpo”, disse, embora não soubesse de onde vinha o dinheiro ao certo: “Não tinha de saber. Sabia que era dos investimentos da família”.

A empresa estava sediada em Malta e “a sua função era investir em ativos na área do desporto”. No fundo, “investimentos em talento” — neste caso, jogadores. “É muito comum no ténis”, disse, acrescentando: “Eu tinha uma regra: não investir em atletas com mais e 23 anos e investir naqueles que dessem rentabilidade de três vezes”. Nélio Lucas deu até o exemplo da contratação do jogador Marcos Rojo para o Sporting em relação ao qual a Doyen pagou 75% e, quando o jogador foi comprado por outro clube, recebeu 75% do valor da compra. O ex-administrador admitiu mesmo, quando questionado pelo juiz-adjunto, que a empresa “nunca perdeu” dinheiro. “Ainda bem”, afirmou.

Rui Pinto, o principal arguido, responde por 90 crimes — todos relacionados com o facto de ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice. São, assim 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.

Aníbal Pinto, o seu advogado à data dos alegados crimes, responde pelo crime de tentativa de extorsão porque terá servido de intermediário de Rui Pinto na suposta tentativa de extorsão à Doyen. E é por isso que se sentam os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.

Rui Pinto. O rapaz do “cabelito espetado” que já entrava nos computadores da escola antes de ser o “John” do Football Leaks

O alegado pirata informático esteve em prisão preventiva desde 22 de março de 2019 e foi colocado em prisão domiciliária a 8 de abril deste ano, numa casa disponibilizada pela PJ. Na sequência de um requerimento apresentado pela defesa do arguido, a juiz Margarida Alves, presidente do coletivo de juízes — que está a julgar Rui Pinto e que tem como adjuntos os juízes Ana Paula Conceição e Pedro Lucas — decidiu colocá-lo em liberdade. O alegado pirata informático deixou as instalações da PJ no início de agosto e a sua morada atual é desconhecida.