O duplo álbum “Amália 1970 Ensaios”, a editar na próxima sexta-feira, inclui inéditos da fadista e contou com o apoio do Arquivo Nacional do Som, que restaurou gravações, algumas feitas em casa, outras nos estúdios Valentim de Carvalho.
Esta nova edição reúne documentos inéditos, gravados em 1970 e 1971, nos quais sobressai “o grande virtuosismo vocal e artístico” de Amália que, “mais do que um aperfeiçoamento apenas formal, mais do que fazer uma ‘voltinha’, diferente aqui, ou uma variação ali”, procurava também “novos e por vezes inesperados caminhos emocionais para cada peça”, disse à agência Lusa o investigador Frederico Santiago, coordenador deste projeto.
Estes “Ensaios”, inteiramente preenchidos com música de Alain Oulman, são uma verdadeira janela para a oficina de trabalho e a cumplicidade artística entre Amália e o compositor, a que se juntava o guitarrista José Fontes Rocha, na construção do “ambiente certo para cada fado ou canção”.
“Aqui se prova que Amália também trabalhava, e muito. Nunca se sentindo totalmente satisfeita com o resultado, mesmo que para nós ele seja já perfeito, o que não deixa de ser um dos segredos do seu génio – o eterno descontentamento e procura permanente da perfeição”, disse Frederico Santiago.
O musicólogo sublinha ainda que este universo de canções feitas com Oulman é um “repertório que Amália, certamente por temer a censura, viria a editar depois do 25 de Abril de 1974, mas em versões gravadas mais tarde, com menor brilhantismo vocal do que estas” que agora se revelam.
Defende Santiago que, ainda antes da Revolução dos Cravos, como se prova nesta edição, “existe uma Amália, totalmente livre de preconceitos artísticos e políticos”.
Outra parte do repertório aqui ensaiado ficou inédito e é agora trazido a público, como “Sete Estradas”, de Armindo Rodrigues, e a adaptação em estilo de tango do poema “Objeto”, de Ary dos Santos, do qual resultou “Com Vossa Licença”, ensaiado em casa de Amália, com os guitarristas e com Alain Oulman ao piano.
No ‘booklet’ que acompanha os discos, e que é um guia de audição deste “precioso material”, é também referido que “a intervenção de restauro, feita por Pedro Félix [do ANS], foi reduzida e muito precisa”, visando “atenuar alguns efeitos sonoros indesejados que prejudicavam a audição”, sobretudo nos ensaios gravados em casa de Amália.
“O objetivo [foi] manter-se fiel ao caráter do registo”.
A colaboração do ANS com a Valentim de Carvalho surgiu no âmbito das comemorações, em curso, do centenário de Amália Rodrigues (1920-1999), explicou à Lusa o antropólogo Pedro Félix, da comissão instaladora do ANS.
Para Pedro Félix esta é “uma edição fantástica, um documento raro de alcançar, que nos traz uma Amália de carne e osso”.
“Esta edição ecoa muito na minha sensibilidade enquanto antropólogo; vê-se uma outra realidade que quase sempre fica escondida, este saber fazer, o processo de construção de um material, do qual só se conhece normalmente a parte final”, disse Félix que referiu ainda ser “um documento histórico a artístico raro, de uma artista de tão elevado nível como Amália”.
O ano de 1970, o ano da publicação do Long Play “Com que Voz”, em março, foi particularmente ativo para Amália, como demonstra a cronologia incluída no ‘booklet’. A sua agenda incluiu atuações de norte a sul do país, além de vários espetáculos no estrangeiro, como na Expo’70, em Osaka, no Japão, em Itália, na Alemanha e nos Países Baixos.
Este duplo álbum “realça de forma ainda mais decisiva a importância e a modernidade criativa de Alain Oulman” (1928-1990), afirmou à Lusa Frederico Santiago, que, no seu texto, nesta edição, cita o compositor sobre o fado “Rosa Vermelha”, do qual surgem vários ensaios e ‘takes’ experimentais.
“‘Rosa Vermelha’ foi uma ideia minha. Eu queria fazer uma canção sobre uma rosa encarnada e, francamente, foi o único poema em que colaborei com o Zé Carlos [Ary dos Santos], algumas das metáforas são minhas”, escreveu Oulman.
Neste fado, do ponto de vista da melodia, “podemos mesmo falar numa co-composição entre Amália e Alain, como se pode ouvir no extraordinário caminho percorrido entre a versão ‘pura’ do compositor e as últimas versões, já próximas melodicamente da leitura editada anos depois”, acrescentou Santiago, “uma forma de podermos ser também testemunhas de um excecional caminho criativo, que na música quase nunca são preservados para a posteridade”.
A maior parte dos poetas que Oulman musicou nesta altura, e aqui ensaiados, eram da oposição ao regime. Também o compositor tinha sido preso pela polícia política da ditadura, a PIDE, e expulso do país em 1966.
Entre esses poetas estavam Manuel Alegre, Ary dos Santos e Armindo Rodrigues. Alguns deles eram cantados no estrangeiro por Amália, nessa altura, mas não em Portugal.
Esta nova etapa da edição integral da obra de Amália insere-se nas celebrações dos 100 anos do seu nascimento.
Amália Rodrigues surgiu em 1939, no Retiro da Severa, em Lisboa. Em 1943, estreou-se internacionalmente em Madrid e, no ano seguinte, atravessou o Atlântico para atuar no Brasil, tendo aí gravado os primeiros discos.
Ao longo de mais de 50 anos, atuou nos mais prestigiados palcos internacionais, do Teatro Sistina, em Roma ao Lincoln Center, em Nova Iorque, passando pelo Hollywood Bowl, em Los Angeles, pelo Olympia, em Paris, pelo Concertgebouw, em Amesterdão, pela Sala Tchaikovsky, em Moscovo, ou pelo Sankei Hall, em Tóquio.
Amália, desde a sua estreia até ao seu discreto recolhimento, na década de 1990, na sua casa da rua de S. Bento, em Lisboa, teve sempre pessoas que a seguiam e “a idolatraram”.
“As cartas nunca pararam de chegar a São Bento”, recordou anos mais tarde à Lusa, a sua secretária e amiga, Estrela Carvas.