“Quem vê caras não vê doença mental”, é um projeto da Janssen, companhia farmacêutica do grupo Johnson & Johnson, em parceria com o Observador, e que quer combater estigmas e mitos da doença mental e relançar um novo olhar para esta área, lembrando a necessidade desta ser uma prioridade para o país..
Para isso, desafiámos várias personalidades a dar voz e cara à história de quatro figuras bem conhecidas de todos e que sofreram de doença mental: Chester Bennington, vocalista dos Linkin Park, Robin Williams, ator, John Nash, matemático e Nobel da Economia e Vincent Van Gogh, pintor.
Falemos do pintor Vincent Van Gogh.
Van Gogh. Um artista maior que o seu tempo
Quando falamos em Vincent Van Gogh, rapidamente associamos o nome do artista holandês ao episódio em que cortou a sua própria orelha – o surto psicótico mais conhecido -, e ao facto de se ter tornado célebre após a sua morte. Contudo, a história de vida deste homem, e quarta personalidade do nosso projeto, revela-nos não só o enorme potencial artístico, como outra face da moeda, relacionada com a adição ao álcool e as perturbações mentais que o mantiveram em constante sofrimento durante a sua curta vida. Apesar de não ser consensual, vários especialistas referem que a sintomatologia que sentia – falamos dos surtos psicóticos, da psicose e dos períodos depressivos -, revela um quadro de esquizofrenia.
Também Joaquina Castelão, presidente da FamiliarMente (Federação Portuguesa das Associações das Famílias de Pessoas com Experiência de Doença Mental) e uma das intervenientes neste episódio, partilha da mesma opinião: “os escritos que ele deixou, as inúmeras cartas que ele trocava com o irmão mais novo, tudo levam a crer que realmente sofria de uma doença mental grave, cujos sintomas são muito similares à esquizofrenia, as alucinações, os delírios, o ouvir vozes.”
Atualmente considerado um dos maiores pintores de todos os tempos, Van Gogh nem sempre pintou e a decisão de fazê-lo mudou, para sempre, a sua vida e a história da arte. Foi apenas aos 27 anos, após várias tentativas profissionais falhadas, que o artista holandês decidiu dedicar-se às artes. Em menos de dez anos de carreira, produziu cerca de 900 pinturas e mais de 1000 desenhos e esboços, sendo que os quadros mais famosos da sua obra foram feitos durante os últimos dois anos da sua vida. Vincent Van Gogh morreu no dia 29 de julho de 1890, aos 37 anos, devido a um tiro que infligiu no próprio peito.
É preciso normalizar. O doente não é a sua doença
Sandro Resende, artista e fundador do projeto artístico Manicómio, também convidado deste projeto, é peremptório na forma como refere que, quando pensa em Van Gogh, não pensa em doença mental: “penso em arte, penso em pesquisa, penso em resiliência, penso em alguém que trabalhou muito para chegar a um objetivo”, colocando de lado a ideia de que, tanto Van Gogh como outras pessoas que sofrem de doença mental, devam ser olhadas de forma diferente pela doença que têm, especialmente num contexto de atividade profissional.
Desde 2015 que Joaquina Castelão dá a cara por esta luta, quando a FamiliarMente foi constituída, e considera que existe ainda um grande caminho para percorrer rumo à forma como olhamos este tipo de patologias em relação a outras: “se vamos na rua e alguém ao nosso lado ou do outro lado caiu, escorregou, o nosso instinto imediato é ir ajudar a pessoa a levantar-se, perguntar se está bem. Se passarmos por uma pessoa que aparenta estar desequilibrada psiquicamente, por exemplo falar com um candeeiro, falar sozinho, a maioria da população ignora, muda para o outro passeio ou até se ri porque não compreende que a dor emocional será tão forte ou mais forte que a dor física.”
As cartas que Van Gogh enviou ao seu irmão mais novo ao longo dos anos mostram o profundo sofrimento em que vivia, enquanto se expressava artisticamente de forma brilhante. Na época, os métodos de diagnóstico e tratamentos deste tipo de sintomatologia eram escassos, o que poderá ter dificultado a sua recuperação, apesar de voluntariamente ter dado entrada em hospitais psiquiátricos.
Sandro Resende refere que “não é glamouroso ter doença mental, há uma dor constante”. Contudo, é necessário que essa dor seja bem trabalhada pelos médicos para que depois a pessoa desenvolva o trabalho artístico como quiser. “Logicamente que o Van Gogh sofreu muito enquanto pessoa mas se calhar também sofreu por não ter sido aceite pelos seus pares, ou por a obra dele não ter sido reconhecida. Se calhar isso provocou mais dano do que a própria doença mental que ele tinha”, conclui.
Mudança. Que caminho devemos seguir?
A esquizofrenia é considerada uma das perturbações mais graves na psiquiatria: falamos de uma doença crónica que tem um profundo impacto no comportamento e forma de pensar do doente. Atinge cerca de 1% da população e por norma tende a manifestar-se nos últimos anos da adolescência, contudo existem casos que se revelam em idades mais avançadas. É importante perceber que existe potencial de estabilização nesta doença, para isso é essencial estabelecer um compromisso com os tratamentos que podem ajudar a reduzir e eliminar sintomas, de forma a que a pessoa viva da melhor forma possível.
Em Portugal, existem cerca de 48 mil doentes com esquizofrenia, estimando-se que 7 mil deles (16%) não tenham qualquer acompanhamento médico.
Os custos com esta doença atingem os 436,3 milhões de euros anuais, dos quais a larguíssima maioria (340 milhões de euros) resultam de absenteísmo, não participação no mercado de trabalho, produtividade reduzida dos doentes e dos familiares/cuidadores.
Segundo estudo da SPPSM, a idade média de início dos sintomas da doença é de aproximadamente 22 anos. Em média, decorrem dois a três anos desde o início dos sintomas até ao acompanhamento em consulta da especialidade e um a três anos desde o início do acompanhamento à instituição de terapêutica farmacológica, o que torna o quadro clínico sempre mais complexo. Neste mesmo estudo, a maioria dos inquiridos (63,4%) refere que se encontra Reformado por Invalidez cujo valor mensal bruto da pensão situa-se entre os 200 e 300€ mensais.
Na opinião de Joaquina Castelão, é necessário alargar mais horizontes porque esta ainda continua a ser uma área pouco explorada da medicina, na medida em que “não existem meios de diagnóstico que possam determinar num espaço curto de tempo qual é a patologia de que a pessoa sofre”.
Para Sandro Resende, a mudança passa por “uma coisa muito política”: “passa pelas instituições da área social onde percebemos que existe uma forma de trabalhar que é muito estigmatizante” na medida em “além do trabalho que fazem a tratar o problema, que é excelente, mais uma vez existe a questão da identidade. Temos de nos preocupar com quem é esta pessoa e o que é que esta pessoa sabe fazer.” O artista português julga que o Estado não está preparado para esta mudança, refere também que é importante “criar empresas sociais em Portugal para que estas pessoas possam receber ordenados condignos e que o Estado permita a criação de novos fundos para que estas pessoas possam receber mais do que um rendimento mínimo, acumular financeiramente e pagar impostos como qualquer outra pessoa paga”.
Ainda sobre o estigma, a representante das associações de famílias da FamiliarMente deixa uma crítica: “acompanhamos os trabalhos da Assembleia da República e é muito triste ver que muitas vezes no hemiciclo os próprios deputados se insultam uns aos outros utilizando a doença mental. Não ouvimos dizer que você é um cardíaco, ou você é um insuficiente renal, mas ouvimos muitas vezes dizer que o seu discurso é esquizofrénico ou é bipolar e isso já aconteceu”.
Um ano antes da sua morte, em 1889, Van Gogh escreveu uma carta a Theo, e lê-se assim: “eu bem sabia que alguém podia partir braços e pernas, e depois melhorar, mas eu não sabia que alguém podia quebrar o cérebro e depois melhorar também”.
Saiba mais sobre este projeto em https://observador.pt/seccao/observador-lab/saude-mental-janssen/