Foi a própria juíza presidente do coletivo a admitir: “Isto não é normal”. É que, durante a audição do advogado Pedro Henriques que continuou esta quarta-feira, ficou a saber-se uma informação que deixou o tribunal algo perplexo: que o inspetor da Polícia Judiciária (PJ) Rogério Bravo lhe tinha enviado um email onde pedia que fizesse um requerimento à então Procuradora-Geral da República (PGR), Joana Marques Vidal, relacionado com o processo Football Leaks. Nesse email, o inspetor enviou mesmo uma espécie de rascunho com uma proposta de requerimento. Pedro Henriques — que prestava assessoria jurídica ao ex-administrador da Doyen, Nélio Lucas — disse não ter “explicação” para esse email.

O email foi enviado do endereço de correio eletrónico pessoal do inspetor em novembro de 2015, numa altura em que a identidade de Rui Pinto ainda não era conhecida. Nele, Rogério Bravo trata Pedro Henriques por “tu” e pedia-lhe que informasse o “amigo N” acerca da sugestão de requerimento, mas “limpando” a “origem” do email “para prevenir incidentes”.

Num discurso hesitante em que não respondia exatamente à perguntas que eram  que lhe feitas, muitas frases ficaram por acabar, Pedro Henriques garantiu que não era amigo de Rogério Bravo, nem sequer o conhecia antes deste processo e não conseguiu apresentar uma razão para o inspetor o tratar por tu — garante, no entanto, que sempre o tratou por “você” e que é “a forma de ele falar”.

Não tenho qualquer relação com ele, não o conhecia, não consigo ter qualquer explicação para me tratar assim. Tem de perguntar ao inspetor”, afirmou.

Também não conseguiu explicar quem era o “amigo N”, embora a juíza tenha sugerido que se tratasse de Nélio Lucas, o empresário que Rui Pinto terá tentado extorquir, pedindo dinheiro em troca da não divulgação de documentos relacionados com a Doyen. A esse email, Pedro Henriques responde apenas: “Obrigado. Assim farei. Abraço”.

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Num segundo email, em que o inspetor envia efetivamente o requerimento pede a Pedro Henriques que o envie à Procuradora-Geral da República “com urgência”. Nesse requerimento era dada a informação a Joana Marques Vidal de que tinha havido uma “escalada criminosa” e que o alegado hacker não só continuava a divulgar informação sobre a Doyen no site Football Leaks como agora tinha feito uma tentativa de extorsão.

Eu vou falar com uma pessoa mesmo muito próxima da Sra. Procuradora-Geral e pedir deferimento disto”, escreve o inspetor, informando Pedro Henriques.

Estes emails geraram alguma inquietação entre os juízes. “No âmbito do crime, os requerimentos não são sugeridos pelo inspetor“, afirmou mesmo a juíza Ana Margarida Alves. Ainda assim, a magistrada questionou ainda por que é que esse email tinha sido enviado para Pedro Henriques, quando não era ele que estava a representar Nélio Lucas. É que o ex-administrador da Doyen estava a ser representado neste processo por advogados da sociedade Vieira de Almeida e Pedro Henriques era, segundo explicou em tribunal, apenas um amigo e assessor jurídico. Também para isto a testemunha não deu uma explicação e sugeriu aos juízes que questionassem o próprio inspetor.

“O escritório era pequeno? Nós sabemos como funcionam as offshores”

Então, quem era Pedro Henriques e qual é o seu papel neste processo? Foi exatamente a essa pergunta que começou por responder na sessão desta quarta-feira. É advogado, mas não é o advogado de Nélio Lucas neste processo, embora já o tivesse representado noutros processos do passado. Na Doyen, prestava assessoria jurídica e “mantinha contactos com escritórios de advogados de vários países”.

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Questionado pela Procuradora da República, Marta Viegas, sobre se costumava ir a Malta, onde a Doyen tinha a sua sede, respondeu que sim: “Umas 15 ou 20 vezes”. Já a resposta à pergunta relacionada com as instalações da empresa não foi tão imediata. O advogado andou às voltas, dizendo que a Doyen tinha mudado de morada algumas vezes, referindo que funcionava em edifícios de escritórios, mas sem dizer concretamente como eram as instalações físicas da empresa.

O escritório era pequeno? Não há que haver nenhum constrangimento. Nós sabemos como funcionam as offshores. As empresas escolhem Malta por ter um sistema fiscal favorável. Se o espaço era maior ou menor, não está isso em causa”, acabou por dizer a juíza.

Pedro Henriques acabaria então por dizer que a sede estava “em edifícios grandes com espaços para empresas, espaços mais pequenos”. “Fui a dois sítios diferentes”, acrescentou.

Mas, neste processo em específico, Pedro Henriques foi o homem que Nélio Lucas pediu, como amigo, para mediar a tentativa de extorsão que Rui Pinto terá feito. Quando o alegado hacker, sob o pseudónimo de Artem Lobuzov, começou a enviar emails ao empresário a pedir dinheiro em troca da não divulgação de informação da Doyen, segundo o MP, Nélio Lucas terá pedido ajuda a Pedro Henriques. Foi nesse sentido que o advogado esteve na reunião na área de serviço da A5, em Oeiras, com Nélio Lucas e o advogado Aníbal Pinto, então em representação de Rui Pinto.

Expliquei a Nélio Lucas que isto era uma extorsão e foi enquanto amigo que aceitei acompanhar. Mas fi-lo com renitência. Até um determinado ponto em que cheguei a um limite”, disse.

Esse encontro acabaria por ser vigiado pela PJ uma vez que, à data, Nélio Lucas já tinha apresentado queixa e a polícia estava agora a acompanhar ao minuto os desenvolvimentos do caso. Em tribunal, explicou que foi Nélio Lucas a determinar o local e a informar a PJ — embora diga que não se apercebeu da presença dos inspetores no local.

A única coisa que perguntei ao Nélio foi acerca da segurança. Podiam ser criminosos. Ele disse: ‘Não te preocupes com isso’. Não sabia de nada”, acrescentou.

O julgamento do Football Leaks retomou esta quarta-feira depois de ter sido suspenso durante 14 dias uma vez que uma das juízas tinha estado em contacto com uma pessoa infetada com o novo coronavírus. Amanhã, quarta-feira, prossegue o julgamento com a continuação do depoimento de Pedro Henriques que irá responder às perguntas dos advogados de defesa.

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Rui Pinto, o principal arguido, responde por 90 crimes — todos relacionados com o facto de ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice. São, assim 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.

Aníbal Pinto, o seu advogado à data dos alegados crimes, responde pelo crime de tentativa de extorsão porque terá servido de intermediário de Rui Pinto na suposta tentativa de extorsão à Doyen. E é por isso que se sentam os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.

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O alegado pirata informático esteve em prisão preventiva desde 22 de março de 2019 e foi colocado em prisão domiciliária a 8 de abril deste ano, numa casa disponibilizada pela PJ. Na sequência de um requerimento apresentado pela defesa do arguido, a juiz Margarida Alves, presidente do coletivo de juízes — que está a julgar Rui Pinto e que tem como adjuntos os juízes Ana Paula Conceição e Pedro Lucas — decidiu colocá-lo em liberdade. O alegado pirata informático deixou as instalações da PJ no início de agosto e a sua morada atual é desconhecida.