A reestruturação no SEF vai avançar já em janeiro, mas porque já estava previsto no programa de Governo e não por reação apressada ao caso de Ihor Homeniuk. Foi isto que disse o ministro Eduardo Cabrita aos deputados na audição parlamentar pedida pela deputada Joacine Katar Moreira e pelo PSD, sublinhando que o caso da morte no SEF “envergonha” o país, causa “firme repulsa”, e levou ao afastamento imediato de quem estava em funções naquele dia no SEF. Mas não pode ser visto como uma prática comum a todo o organismo, disse o ministro que, no final da intervenção, ainda assumiu “erros” mas sem explicar quais.

Os deputados só tiveram uma ronda de perguntas, e não foram ao repique. Eis o que fica da audição do ministro da Administração Interna na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias a propósito da morte de Ihor Homeniuk no espaço equiparado a Centro de Instalação temporária do Aeroporto de Lisboa no passado dia 12 de março.

Reestruturação do SEF “não é resposta a um quadro de situação trágica” e arranca em janeiro

O primeiro documento que vai efetivar a transformação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras deverá ser aprovado pelo Governo no primeiro mês do ano, mas não é algo que se concretize em pouco tempo. Eduardo Cabrita deixou garantias na comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, mas não sem recordar que a reforma do SEF já era um dos pontos do programa que os socialistas levou às eleições legislativas em 2019 e que ficou vertido no programa do Governo.

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“Não foi escrito agora, em resposta a um quadro de situação trágica”, notou o ministro da Administração Interna que não saiu da audição sem ouvir o Bloco de Esquerda criticar as operações de “cosmética” realizadas no centro de detenção temporária do aeroporto de Lisboa ou o CDS apontar que a instalação do botão de pânico nada resolve já que na situação em que foi colocado Ihor Homeniuk — mesmo que já existisse em março quando o cidadão ucraniano foi morto— jamais conseguiria recorrer a esse instrumento.

Para a reestruturação do SEF estão a trabalhar quatro ministérios em conjunto: Administração Interna, Justiça, Presidência e Negócios Estrangeiros. E, avançou o ministro, depois da aprovação do primeiro documento com vista a reformular as competências do SEF, serão necessários seis meses para o concretizar. Um trabalho demorado, do qual se continua a saber quase nada.

É também em junho, conforme recordou Eduardo Cabrita, que a nova Guarda Europeia de Fronteiras e Costeira, durante a presidência portuguesa da União Europeia, irá entrar em funções. Pouco é conhecido ainda sobre o futuro do SEF e que competências continuará a ter, mas o MAI apontou como hipóteses a “redefinição de competências de natureza policial, e a existência de função não policial no âmbito do ministério da Administração Interna em matéria de asilo”.

Há uma semana o ministério da Administração Interna já tinha emitido uma nota onde dava conta que o trabalho conjunto entre as forças e serviços de segurança para a redefinição do exercício das funções policias na gestão de fronteiras e combate às redes de tráfico humano deveria começar de imediato, sem esperar pela reestruturação do SEF.

O momento em que soube, o caso isolado, a indemnização rápida e os “erros”. Deputados pedem saída, mas Cabrita fica

Apesar de vários deputados terem dito que Eduardo Cabrita não tinha condições para continuar no cargo — Carlos Peixoto, do PSD, apelidou-o mesmo de “zombie político” –, o ministro não tenciona sair. No final da sua intervenção ainda assumiu “erros”, mas garantiu que se mantém na rota dos “valores fundamentais”. E por isso fica. Mais: o caso da morte de Ihor Homeniuk foi isolado, disse, e nenhum dos oficiais que estava em funções naquele fatídico dia se mantém em funções.

“O Governo certamente poderá cometer erros. E o ministro, no plano pessoal, ainda mais. Sou o primeiro a entender que claramente que posso errar, [mas] não temos dúvidas quanto aos valores fundamentais. Estou certo quanto a estes e esta comissão está em inteira sintonia connosco”, disse o ministro não explicando a que “erros” se referia nem explicando, por exemplo, porque é que não afastou a diretor do SEF quando se soube que o cidadão ucraniano tinha morrido às mãos do Estado.

Sobre isso, Cabrita apelidou apenas a entrevista que Cristina Gatões deu no passado dia 16 de novembro à RTP de “lastimável” e concordou com o deputado do PCP António Filipe, que tinha falado numa entrevista “desastrada”. E acrescentou: apesar de a diretora do SEF não ter sido visada nem no processo crime nem no processo disciplinar da IGAI, “manifestamente não tinha condições para liderar o SEF no quadro da reestruturação profunda que está a ser desenvolvido”.

Durante a explicações perante os deputados, o ministro lembrou que na certidão de óbito do cidadão constava “morte por paragem cardiorrespiratória” e que as agressões de que foi vítima só foram conhecidas pelo relatório da autópsia de 23 de março, que apenas foi comunicado ao Ministério Público a 29 desse mês. Ou seja, só a partir daí é que o MAI pôde agir em conformidade. Daí que, explicou Eduardo Cabrita, no dia 30 de março tenha demitido os responsáveis da direção de Fronteiras de Lisboa, tenha ordenado o encerramento imediato do Centro de Instalação Temporária no aeroporto de Lisboa (que só reabriu a 1 de agosto), e que tenha instaurado a abertura de 5 processos disciplinares aos inspetores bem como a abertura de um inquérito à Inspeção Geral de Administração Interna (IGAI).

Ou seja, no entender do ministro, fez tudo o que podia fazer para apurar responsabilidades a partir do momento em que soube, pelo relatório da autópsia, que a morte de Ihor tinha sido “violenta e bárbara”. Cabrita rejeita por isso qualquer “contradição” com o que tinha dito ao Parlamento em abril, altura em que disse que o SEF tinha instaurado um processo interno no dia seguinte à morte de Ihor e afinal o inquérito só foi aberto a 30 de março, 17 dias depois do homicídio. “Não há contradição nenhuma”, disse, sublinhando que até ao dia 29 o MAI apenas sabia que um cidadão tinha morrido nas instalações do SEF de morte natural.

Sobre isso, foi mais longe: disse que a IGAI participou à Ordem dos Médicos sobre o médico que certificou o óbito como tendo sido por causas naturais e diz que o coordenador do gabinete de inspeção do SEF que fez o processo de averiguação interna sobre a morte do cidadão ucraniano e concluiu que não tinha havido nenhum sinal de agressão foi alvo de um processo disciplinar. Ou seja, houve “encobrimento”, “negligência grosseira” e “omissão de auxílio”, o que, disse Cabrita, “nos envergonha enquanto país” e provoca “firmíssima repulsa”.

Perante as novas informações, conhecidas dia 29, o ministro diz que agiu e afastou de imediato os agentes envolvidos. “Nenhum deles se encontra a exercer funções no aeroporto de Lisboa”, disse, sublinhando que também os seguranças que exerciam o seu trabalho no local naquela data foram afastados. Só não explicou o porquê de a indemnização à família ter tardado — ainda que, disse, o envio de condolências tenha sido feito logo “em abril”. Quanto à indemnização, que vai sair do orçamento do SEF, Cabrita disse apenas que espera que seja entregue à família “num prazo muito curto”. Mais curto do que outras indemnizações que também tiveram a intervenção da Provedoria de Justiça, como as dos incêndios florestais. Cabrita referiu-se ainda às indemnizações atribuídas no processo da morte dos formandos no curso de Comandos do Exército, mas o gabinete da Provedoria de Justiça lembra que nesse caso não houve interferência da Provedoria.

De resto, e ainda antes de anunciar que a reforma do SEF estava prevista para arrancar já em janeiro, o ministro ainda procurou amenizar aquele organismo, sublinhando que desde que o Centro de Instalação Temporário foi reaberto a 1 de agosto, passaram por lá 164 pessoas e todas elas estiveram lá menos de 48 horas — à exceção de três que tiveram mais tempo, sendo que a lei determina que não devem ficar retidos mais de 7 dias. Mais: o ministro acredita que o que se passou no SEF foi caso isolado, na medida em que a PJ só registou mais duas mortes registadas naquele local nos últimos 10 anos, uma em 2014 e outra em 2019, e ambas foram investigadas tendo-se concluído pela morte por causas naturais estando relacionadas com correios de droga. “Neste quadro não há qualquer registo de circunstância similar”, disse.

Quanto a “abusos de outro tipo”, Cabrita disse ainda que esses eventuais abusos são investigados pela IGAI no quadro das queixas transmitidas, sendo que no corrente ano de 2020 foram feitas 51 queixas do SEF, enquanto por exemplo foram feitas 510 queixas relativamente à PSP e 318 à GNR. Ou seja, é a “atividade normal”.

Partidos questionam continuidade de Diretor Nacional da PSP, mas ficam sem resposta

Se Eduardo Cabrita já não estava numa posição confortável, depois da ida de Magina da Silva a Belém nada melhorou. E os partidos aproveitaram a audição desta terça-feira para questionar Cabrita sobre se o Diretor Nacional da PSP tinha ainda condições para continuar no cargo.

Primeiro o PCP, com António Filipe a classificar as declarações de Marina da Silva como “insólitas”, depois também André Ventura que disse que este não é um tempo para “um concurso de ideias sobre o que se passa no SEF ou na PSP”.

Eduardo Cabrita usou do tempo disponível depois de uma ronda de perguntas dos vários partidos e deputadas não inscritas, mas não tocou por uma vez no assunto e, só depois da insistência do presidente da comissão, Luís Marques Guedes— e já depois de o ministro ter dado por terminada a intervenção —, é que aflorou a questão, mas sem responder — ficou-se pelo raspanete público.

“Quanto às declarações à saída, os comentários em nome do Governo são públicos, a PSP e outras forças de segurança deve cingir as suas intervenções públicas a matérias da sua estrita competência operacional”, afirmou apenas o ministro da Administração Interna, repetindo a crítica já feita publicamente ao Diretor Nacional da PSP, mas escusando-se a tecer juízos sobre se este terá ou não condições para se manter no cargo.

Recorde-se que no domingo, depois de ser recebido em Belém pelo Presidente da República, Magina da Silva afirmou que queria extinguir o SEF e a PSP e avançar para a criação de uma Polícia Nacional e o ministro da Administração Interna não tardou em vir a público dizer que não é “um diretor de Polícia que anuncia reforma do SEF”. Ainda na mesma noite, Magina da Silva emitiu um comunicado para frisar que as declarações à saída da audiência com Marcelo Rebelo de Sousa eram sua visão pessoal, mas o copo já bem cheio para o ministro da Administração Interna não recuperou bem de mais um abanão.