“Manuela…” — mal tinha dito o seu nome completo e já estava em lágrimas. Manuela Cabral, como viria a conseguir dizer depois de aclarar a voz, foi a primeira testemunha ouvida naquela que é a segunda sessão do julgamento do homicídio de um cidadão ucraniano no aeroporto de Lisboa: é empregada de limpeza no Centro de Instalação Temporária (CIT). “Tenha calma. Não esteja nervosa”, disse-lhe o juiz-presidente do coletivo, Rui Coelho, sugerindo até que saísse da sala e voltasse mais tarde. Breves segundos depois, Manuela Cabral lá se acalmou para explicar que viu logo Ihor Homeniuk na manhã de 12 de março por volta das 7h00 da manhã — antes das alegadas agressões — porque a sala do material de limpeza “é ao lado” da sala onde o passageiro estava.

Estava um colega sentado à porta a vigiar aquele senhor. Vi que ele estava lá. Deitado no colchão, de lado. Fez um movimento para se sentar”, disse.

Manuela explicou que, no momento em que o viu, “não tinha as mãos amarradas” . Por volta das 8h00 lembra-se que viu “vários inspetores da entrar”. Momentos mais tarde, numa altura em que o segurança já não estava à porta a vigiar Ihor, viu-o “a mexer-se em direção à porta” e fez “sinal para parar”, mas não chamou ninguém. Acrescentou ainda que nunca ouviu gritos, nem viu vestígios de sangue. “Falava sozinho, mas não percebia o que dizia, num tom de voz normal”, disse.

Esta terça-feira foram ouvidas nove testemunhas — sendo que o depoimento de uma delas ficou a meio: dessas, sete eram inspetores do SEF que estavam ao serviço no dia do alegado crime. Juntas começaram a traçar uma linha do tempo do que se passou nas horas antes de Ihor Homeniuk ter morrido, com algumas falhas que deverão ser preenchidas pelas restantes testemunhas que ainda serão ouvidas. Mas também com algumas contradições que levantam dúvidas quantos ao depoimento dos inspetores acusados e de eles próprios.

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Disseram-lhes que era dos “piores” passageiros de sempre. A versão dos inspetores do SEF julgados pelo homicídio de Ihor Homeniuk

Desde logo, Manuela Cabral contou que no momento em que, por volta das 7h00 da manhã, viu Ihor Homeniuk “não tinha as mãos amarradas”. Só que, cerca de uma hora depois, quando os inspetores acusados entraram na sala, garantem que o ucraniano tinha mãos e pés atados com fita adesiva — o que levanta várias questões: alguém colocou essa fita depois, entre as 7h00 e as 8h30? Estarão os inspetores a mentir? Ou Manuela Cabral viu mal?

Inspetor encontrou Ihor enrolado em fita adesiva e confrontou vigilantes. Resposta foi “evasiva”

Muito antes de Manuela Cabral ter visto Ihor, houve outros acontecimentos relatados esta quarta-feira. O inspetor Bruno Francisco, por exemplo, contou que acompanhou o cidadão ucraniano ao Hospital de Santa Maria ainda no dia 10 de março, na sequência de um aparente ataque de epilepsia. E esteve com ele no dia seguinte: “Os vigilantes disseram-me que havia uma cidadão bastante violento e já tinha tentado entrar no quarto das mulheres. Reparei que era o cidadão da noite anterior e achei estranho porque estava totalmente diferente da noite anterior, quando estava calmo e sereno”, explicou. Estava “muito inquieto de um lado para o outro” e a dada altura apontou “para o cigarro” que um inspetor estava a fumar. “Será que quer fumar?”, questionou-se, explicando que de seguida o levaram até ao pátio e lhe deram um cigarro.

Os inspetores Duarte Laja (à esquerda) e Bruno Sousa (à direita) à saída do tribunal

Só que, segundo conta, Ihor continuava agitado e “começou a falar de forma agressiva com outros passageiros que lá estavam”. Estava com “atitudes imprevisíveis, parecia que lhe faltava alguma coisa”. A dada altura, decidira tentar algemá-lo, mas Ihor “cravou unhas e fez sangue no meu colega”. “Transportámo-lo para o solo. Não estávamos a conseguir algemá-lo. Mas, para não o aleijar, acabámos por algemar com as mãos à frente — não é o mais correto”, contou.

Ihor é assim levado para a sala de onde nunca mais viria a sair. “Os vigilantes limparam tudo para ele não se magoar e depois de algemado e de tomar a medicação ficou um pouco mais calmo”, conta. Por isso, acabou por lhe tirar as algemas e terminou o seu turno.

Só que, quando o inspetor Filipe Cardoso viria a contactar com Ihor Homeniuk durante a madrugada de dia 12, encontrou-o atado com fitas adesivas nos pés e nas mãos, presas à frente — e não como o inspetor Bruno Francisco o tinha deixado. Quem lhe colocou as fitas adesivas? Foi esta a pergunta que Filipe Cardoso fez. “Peguei nas minhas chaves pessoais e abri as fitas adesivas e confrontei o vigilante que referiu que ele estava irrequieto e se tornou agressivo para ele e os outros e por isso tinha feito aquilo, que tentaram que não causasse mal a si próprio. E que estava a mandar-se contra as coisas”, contou, acrescentando que “o segurança foi evasivo na resposta”.

Filipe Cardoso garante que pediu aos vigilantes que não usassem as fitas, mas sim “lençóis porque permite à pessoa movimentar-se”. Foi, aliás, o que ele fez: “Eu atei o passageiro com lençóis descartáveis na zona dos pulsos e da cintura juntamente com o colchão”.

Só que, de manhã, quando Manuela Candal chegou para fazer as limpezas no CIT e espreitou para dentro da sala, diz que viu “restos de lençol no chão”. E, de acordo com os inspetores acusados, Ihor estava novamente amarrado com fita adesiva. Isto pode significar que Ihor foi atado com fita adesiva uma segunda vez, se a versão dos inspetores corresponder à verdade.

Inspetora nega ter ouvido gritos, apesar de ter contado isso à PJ, em abril

Outra das testemunhas, Cecília Vieira, inspetora do SEF, contou que chegou a ver Ihor por volta das 7h20 da manhã, sentado no chão da sala, em cima de um colchão. Lá dentro, estava um vigilante com quem trocou algumas palavras, que reproduziu:

— O que está aqui a fazer?

— Estou a vigiar este indivíduo porque se portou mal

A inspetora — uma dos pelo menos três inspetores que entraram com um advogado — disse que o que a chamou a atenção foi o facto de a luz da sala estar acessa e não ter ouvido quaisquer gritos. Não ouviu, garantiu esta quarta-feira, apesar de à Polícia Judiciária, em abril, ter dito que que o cidadão ucraniano estava aos gritos e algo irritado. Confrontado pelo presidente do coletivo de juízes com esta discrepância, Cecília Vieira hesitou e respondeu: “Agora não me recordo, se calhar nessa altura recordava-me”.

O que viram (e contaram à PJ) os primeiros socorristas a chegar junto de Ihor Homeniuk

Inspetor diz que não viu “nada de censurável”. Outro conta que viu ucraniano algemado de “barriga para baixo” — e contraria arguidos

Também dois inspetores que entraram na sala quando lá estavam os três inspetores falaram esta terça-feira. O que viram eles? Um deles, Bruno Antunes, contou que viu Ihor Homeniuk algemado de “barriga para baixo” e a “mexer muito os ombros” — contrariando assim a versão dos três arguidos que garantiram que o cidadão ucraniano esteve sempre de barriga para cima.

Pareceu-me que não tinha grande vontade de estar algemado daquela maneira, para estar a mexer-se assim”, disse Bruno Antunes.

Eram cerca de 8h45, quando Bruno Antunes encontrou o inspetor Luís Silva, arguido, no balcão de entrada do Centro de Instalação Temporária (CIT). “Perguntei o que ele estava a fazer e ele disse: ‘Se quiseres vai ali ver’. Acompanhei-o até à sala e verifiquei que se encontrava lá o inspetor Duarte Laja e Bruno Sousa e um cidadão num colchão no centro da sala, em cima de um colchão, com as mãos algemadas”, explicou. Questionado pela Procuradora da República, Bruno Antunes disse que Ihor estava de “barriga para baixo naquele momento”. Diz, no entanto, que não viu que tivesse quaisquer “marcas ou hematomas”. E apontou que esteve junto à sala durante breves minutos.

De acordo com a autópsia realizada, o cidadão ucraniano tinha fraturas no tórax que indiciavam que teria sido algemado com as mãos atrás das costas, colocado de barriga para baixo e, depois, pressionado contra o chão. Sofreu, desta forma, asfixia, acabando por morrer, segundo o relatório.

Como a autópsia e uma queixa anónima denunciaram o homicídio de Ihor Homeniuk no aeroporto de Lisboa

Já o inspetor-chefe do SEF João Agostinho garantiu que não viu “nada de censurável”. “Constatei a intervenção deles. Foram cumpridas todas as regras. Não vi nada de censurável”, disse. No entanto, questionado pelo juiz-presidente Rui Coelho, João Agostinho esclareceu que “não vi tudo”. “Então como é que pode afirmar que constatou a intervenção deles?”, perguntou o magistrado. “Cheguei numa altura em que estavam agarrá-lo e a tentar acalmá-lo“, respondeu-lhe, imitando o que ouviu: “Calma, Calma”.

Tribunal não vai ter em conta reconstituição do crime porque foi feita sem os advogados

O coletivo de juízes que está a julgar os três inspetores do SEF revelou também na sessão que não vai ter em conta a reconstituição do crime para avaliar o caso. Isto porque os advogados dos arguidos não estiveram presentes, nem foram avisados. 

A intenção deste tribunal é trabalhar sem as reconstituições. Como foram feitas é pegar nas declarações das pessoas. Se se chegar ao fim e for necessário alguma coisa das reconstituições, iremos avaliar”, explicou o juiz-presidente Rui Coelho.

Nas exposições introdutórias, o advogado de um dos inspetores, Ricardo Serrano Vieira, tinha alertado precisamente para o facto de as defesas não terem sido notificadas para estarem presentes na reconstituiçõa, um “caso único” e que demonstra “deslealdade”.

Como a PJ reconstituiu o homicídio de Ihor a partir das imagens de videovigilância do SEF

Esta é segunda sessão do julgamento do homicídio de Ihor Homeniuk e aquela em que começam a ser ouvidas as primeiras testemunhas. Na sessão passada, de terça-feira, foram ouvidos os três inspetores do SEF que, quase um ano depois do alegado homicídio, quebraram o silêncio: disseram que, quando foram à sala onde o cidadão ucraniano estava, já encontraram amarrado e com marcas de agressões. E algemaram-no para sua segurança.

Ihor Homenyuk morreu a 12 de março no Centro de Instalação Temporária do aeroporto de Lisboa, dois dias depois de ter desembarcado, com um visto de turista, vindo da Turquia. De acordo com a acusação, o SEF terá impedido a entrada do cidadão ucraniano e decidido que teria de regressar ao seu país no voo seguinte. As autoridades terão tentado por duas vezes colocar o homem de 40 anos no avião, mas este terá reagido mal. Terá então sido levado pelo SEF para uma sala de assistência médica nas instalações do aeroporto, isolado dos restantes passageiros, onde terá sido amarrado e agredido violentamente por três inspetores do SEF, acabando por morrer.

Apesar de no relatório o SEF ter descrito o óbito como natural, o médico-legista que autopsiou o corpo não teve dúvidas de que tinha havido um crime, alertando imediatamente a PJ, que acabaria também por receber uma denúncia anónima que referia que Ihor Homenyuk tinha ficado “todo amassado na cara e com escoriações nos braços”.

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Os inspetores Luís Silva, Bruno Sousa e Duarte Laja foram detidos no final de março e encontram-se em prisão domiciliária por causa da pandemia de Covid-19. Foram acusados no final de setembro e respondem, cada um, por um crime de homicídio qualificado em coautoria. Duarte Laja e Luís Silva respondem ainda por um crime de posse de arma proibida.