A vigilante Ana Lobo resumiu o seu papel na história como tendo sido “uma das pessoas que vai lá levar água” — lá, à sala dos Médicos do Mundo, no aeroporto de Lisboa onde Ihor Homeniuk esteve largas horas —, fazendo assim antever um testemunho parco em detalhes. Traçou um cenário semelhante ao que tinha sido descrito por outras testemunhas: o ucraniano estava “agitado”, sim, e até o viu a “dar murros na parede”, mas nunca viu nenhum colega seu a atar o passageiro com fita adesiva ou sequer nunca viu alguém a usar aquele material para manietar passageiros. Mas quando o juiz-presidente Rui Coelho começou a folhear o processo e a confrontar com as imagens de videovigilância, a sala de audiências rapidamente percebeu que Ana Lobo não era só “uma das pessoas que vai lá levar água”.

As imagens mostravam que a vigilante foi de facto levar objetos à sala — mas não foi apenas água. Mostram, segundo descreveu o magistrado, que levou uma revista, uma tesoura e fita adesiva, por duas vezes. E que, na última vez que levou a fita, tinha luvas descartáveis nas mãos. Só que Ana Lobo não podia imaginar que o tribunal estava na posse destas filmagens — filmagens que a PJ não juntou ao processo e que apenas foram anexadas porque os advogados dos inspetores as pediram ao SEF, a tempo de expirarem automaticamente.

E também porque o juiz-presidente Rui Coelho não lhe revelou logo que tinhas todas as filmagens. Começou por dizer-lhe que tinha uma onde era possível vê-la a levar uma tesoura até à sala. “Sim, vigilante pediu-me uma tesoura. Levei-a até à porta da sala”, disse ouvida como testemunha na terceira sessão do julgamento do homicídio de Ihor Homeniuk, reforçando que não viu nenhuma fita adesiva. Mas novamente aqui, o magistrado trocou-lhe as voltas — até porque, como disse, “o Diabo está nos detalhes”.

— Nas imagens, pega na fita às 5h08, vai em direção à sala e às 5h11 é que volta para trás. Esteve com luvas postas por alguma razão… — afirmou o juiz-presidente.

Confrontada com as imagens e com a memória refrescada, Ana Lobo acabou por admitir que levou também fita adesiva, por duas vezes, aos dois vigilantes que se encontravam no interior da sala. Bem como uma revista. “Achei estranho, mas não perguntei”, contou. Quanto às luvas, garante que não mexeu no cidadão ucraniano e que apenas levou luvas porque tinha tirado uma formação relacionada com a pandemia de Covid-19 e receava que houvesse alguma contaminação.

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A advogada Mariana Manuel Candal, que representa o inspetor Luís Silva, e o advogado Ricardo Serrano Vieira que representa Duarte Laja

Questionada já pela advogada Maria Manuel Candal, que representa o inspetor Luís Silva, a vigilante contou que viu os seus dois colegas, “a pôr fita [adesiva]” nos pés do cidadão ucraniano. Achou “estranho”, mas como estava naquele cargo “há pouco tempo”, não questionou.

Segundo explicou, por volta das 5h00 da madrugada — a segunda vez que foi levar a fita —, Ihor Homeniuk já estava enrolado em fita adesiva e, quando os vigilantes lhe mostraram o rolo, o cidadão ucraniano começou a ficar mais “agitado”.

Então ele já tinha fita adesiva e ainda lhe estavam a pôr mais fita adesiva?”, questionou o juiz-presidente Rui Coelho, sem conseguir uma resposta.

Nessa altura, contou Ana Lobo, o ucraniano estava “muito vermelho” e tinha um hematoma na cara, “de lado”. Quando os vigilantes deixaram a sala, estavam “calmos, mas cansados” e um deles saiu de lá “aleijado”.

Fitas adesivas, lençóis e algemas. Testemunhas constroem uma (incompleta) fita do tempo do homicídio de Ihor Homeniuk

Se, para o juiz, “o Diabo está nos detalhes”, para o advogado Ricardo Serrano Vieira, “o Diabo não sabe muito por ser Diabo, sabe muito por ser velho”. E, chegada à sua vez e fazer perguntas, o representante de Duarte Laja quis afirmar a sua experiência ao perguntar à vigilante por que razão só teve “preocupação” em levar luvas na segunda vez que foi até à sala, quando tinha acabado de dizer que usava luvas por receio de contaminação. Ana Lobo respondeu apenas que o tinha feito porque os vigilantes que estavam dentro da sala a pediram para o fazer.

Os inspetores acusados do homicídio sempre garantiram que não foram eles que amarraram o ucraniano com fita adesiva e que, quando chegaram à sala, ele já estava enrolado com este material — que, inclusive, retiraram para colocar algemas. Outros inspetores do SEF ouvidos como testemunhas disseram mesmo que nunca nenhum passageiro tinha sido enrolado com fita adesiva e que este não era um procedimento normal.

Disseram-lhes que era dos “piores” passageiros de sempre. A versão dos inspetores do SEF julgados pelo homicídio de Ihor Homeniuk

Vigilante ouviu Ihor gritar “dez minutos” quando estava com os inspetores, mas depois esclarece que esteve sempre aos gritos

Logo no início do depoimento, a testemunha tinha dito que ouviu “gritos” durante 10 minutos enquanto os três inspetores acusados estavam na sala onde o cidadão ucraniano se encontrava. “Ouvi gritos e a dizer ai ai”, disse, clarificando depois que os gritos eram de Ihor e que não ouviu os inspetores a gritar. “Perguntei se era normal e disseram que não”, acrescentou. Só que o que Ana Lobo não disse foi que, na verdade, o ouviu gritar em vários momentos “até quando estava sozinho”, incluindo quando os vigilantes lá estavam.

— Durante quantos minutos esteve a gritar enquanto os vigilantes estavam lá dentro? — perguntou o advogado Ricardo Serrano Vieira

— Não me recordo — respondeu a vigilante.

— Conseguiu dizer quantos minutos esteve a gritar enquanto os inspetores lá estavam e não consegue dizer quantos esteve enquanto estavam lá os vigilantes?

— Uns 3 a 5 minutos — afirmou

Horas antes, quando chegou ao Centro de Instalação Temporária e lhe pediram para entregar os seus objetos pessoais, Ihor Homeniuk “não queria entregar as coisas” e estava “reticente”. “Acho que ele não estava a perceber bem o que estava a acontecer”, disse a vigilante Ana Lobo, adiantando que não se lembra que tenha sido chamado algum intérprete.

Médico do INEM diz que Ihor tinha hematoma na cara, mas não “pareceu útil” pôr isso na verificação de óbito

O médico que verificou o óbito de Ihor Homeniuk, João Valente, disse em tribunal não se recordar que a vítima tivesse alguma marca no corpo que o tenha “chamado a atenção”. Ouvido como testemunha, explicou que o ucraniano tinha apenas um “hematoma em cima do olho à direita”. Questionado pelo advogado da viúva da vítima, o médico explicou que não lhe “pareceu útil” colocar essa informação na verificação de óbito. Tinha, de facto, “manchas azuladas” com “áreas esbranquiçadas no corpo”, mas que, segundo explica, é “habitual de um doente em paragem”.

Na verificação de óbito — e não certificado de óbito como a Procuradora afirmou, sendo logo corrigida por João Valente —, o médico do INEM escreveu que tinha encontrado Ihor “em paragem respiratória presenciada após crise convulsiva”. Questionado ainda sobre como sabia que o passageiro tinha tido uma convulsão, João Valente explicou que foi o que lhe tinha dito, na altura, uma enfermeira que ali estava.

O advogado Ricardo Sá Fernandes representa o inspetor Bruno Sousa

Além da vigilante e do médico, foram também ouvidos enfermeiros e socorristas e ainda uma inspetora do SEF que serviu de intérprete porque sabia falar russo. “Ele falava bastante bem. Falámos sempre em russo. Disse que vinha para trabalhos agrícolas, mas que havia uma possibilidade de trabalhar numa empresa que reconstrução de fachadas”, explicou Irina Fonseca em tribunal. A inspetora detalhou que Ihor “estava a responder calmamente”, mas que quando foi ao Hospital de Santa Maria ser assistido e mais tarde chegou ao Centro de Instalação Temporária começou a notar nele alterações. “Ele estava alterado e dizia que tinha de ganhar dinheiro para uma passagem para a Bélgica. Que queria dinheiro para pãezinhos. Percebi que a situação mental não estava bem”, disse, acrescentando que Ihor estava “muito nervoso e a chorar muito, como uma criança”. “Estava mais desesperado do que propriamente agressivo”, acrescentou.

A primeira testemunha do dia foi, o inspetor coordenador do SEF João Agostinho, cuja inquirição tinha ficado interrompida na sessão de quarta-feira. Disse que, quando “por vezes” havia “passageiros problemáticos”, estes “iam para a sala [dos Médicos do Mundo] para se acalmar e para lhes explicar a situação” — “acontecia por vezes”, mas “não era frequente”. O coordenador detalhou que é feita uma “pedagogia para acalmar as pessoas”, mas que é uma “situação temporária para resolver o mais rápido possível” — no caso de Ihor Homeniuk, durou largas horas. Ainda assim, garantiu, em relação aos arguidos: “Nunca me apercebi de qualquer tipo de excesso”.

Fitas adesivas, lençóis e algemas. Testemunhas constroem uma (incompleta) fita do tempo do homicídio de Ihor Homeniuk

Esta é terceira sessão do julgamento do homicídio de Ihor Homeniuk. Na sessão passada, de quarta-feira, começaram a ser ouvidas as primeiras, que construiram uma linha do tempo do que aconteceu na noite. Na anterior, foram ouvidos os três inspetores do SEF que, quase um ano depois do alegado homicídio, quebraram o silêncio: disseram que, quando foram à sala onde o cidadão ucraniano estava, já o encontraram amarrado e com marcas de agressões. E algemaram-no para sua segurança.

Ihor Homenyuk morreu a 12 de março no Centro de Instalação Temporária do aeroporto de Lisboa, dois dias depois de ter desembarcado, com um visto de turista, vindo da Turquia. De acordo com a acusação, o SEF terá impedido a entrada do cidadão ucraniano e decidido que teria de regressar ao seu país no voo seguinte. As autoridades terão tentado por duas vezes colocar o homem de 40 anos no avião, mas este terá reagido mal. Terá então sido levado pelo SEF para uma sala de assistência médica nas instalações do aeroporto, isolado dos restantes passageiros, onde terá sido amarrado e agredido violentamente por três inspetores do SEF, acabando por morrer.

Apesar de no relatório o SEF ter descrito o óbito como natural, o médico-legista que autopsiou o corpo não teve dúvidas de que tinha havido um crime, alertando imediatamente a PJ, que acabaria também por receber uma denúncia anónima que referia que Ihor Homenyuk tinha ficado “todo amassado na cara e com escoriações nos braços”.

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Os inspetores Luís Silva, Bruno Sousa e Duarte Laja foram detidos no final de março e encontram-se em prisão domiciliária por causa da pandemia de Covid-19. Foram acusados no final de setembro e respondem, cada um, por um crime de homicídio qualificado em coautoria. Duarte Laja e Luís Silva respondem ainda por um crime de posse de arma proibida.